O lugar é Mem Martins, numa Igreja Evangélica liderada por brasileiros que, é neste momento, maioritariamente angolana. Portugal, Novembro de 2022. Eu e mais cerca de trinta pessoas esperamos demoradamente pelo início de uma cerimónia de casamento. Tudo se atrasou no Consulado de Angola e, por isso, a derrapagem no horário ultrapassa as duas horas. Aguardo já dentro do salão de culto enquanto uma música instrumental dá ambiente. A mesma canção está em loop há pelo menos meia hora. É o “Hallelujah” do Leonard Cohen.

Não sei se tiveram assim uma fase mais existencialista-pop no final da adolescência mas eu tive (a rigor, ainda estou a tentar sair dela). Essa fase deu-me uma curiosidade por alguns discos do meu pai que tinha ouvido ao crescer mas sem prestar grande atenção. Num Acampamento Baptista de Verão, aí no início da década de 90, o meu conselheiro (o nome que dávamos aos monitores) chamava-se Daniel Jonas (esse mesmo em quem estão a pensar) e tocava o “Suzanne” à guitarra no meio do pinhal. Um alçapão imediatamente se abriu na minha memória e, ao regressar a casa, fui resgatar a discografia do Leonard Cohen, esquecida na prateleira dos vinis nessa era negligentemente digital. Eu, que à altura vivia em dieta auditiva punk, tive no cantor canadiano um convite às delícias da introspecção. Afinal, havia mundo além do apelo à revolução e não sabia.

Fui ao som e fui aos poemas. Dediquei-me a estudar as letras e a compreender que os ouvidos ouvem mais quando as palavras nos criam novos universos. O Cohen começou a inventar coisas que até então não existiam na minha maneira de ouvir música. Uma das oportunidades para isso deu-se, claro está, à custa do “Hallelujah”. “Now, I heard there was this secret chord/that David played and it pleased the Lord/But you don’t really care for music, do you?”— ainda hoje isto me sai de cor, como uma torneirinha aberta. Naquela ocasião pensava: “Uau! Isto é novo e isto é velho para mim!” Um miúdo crescido numa Igreja Protestante sabe bem quem é David e sabe bem o que é um Salmo. O Cohen era, nesse sentido, como eu—uma criatura cultivada nas Escrituras.

Durante anos tentei imitar essa elevação poética do salmista. Foi também à custa disso que eu e os meus amigos criámos a editora FlorCaveira em que havia um dogma trinitário de referências: Dylan, Cash e Cohen. Nunca consegui ser um salmista como eles mas também é verdade que continuo a não desistir. Sobretudo acompanha-me a última frase da canção. “And even though it all went wrong/I will stand before the Lord of Song/with nothing on my tongue but Hallelujah”. Sei, porque a igreja me ensinou e porque o Cohen me ensinou, que toda a existência é avaliada a partir do louvor que exprime. O Dia do Juízo Final é, nesse sentido, uma espécie de concurso musical televisivo mas em bom, em que os concorrentes têm sucesso quando adoram o Criador com todo o coração. A afinação, o timbre e todas essas questões mais técnicas têm uma importância moderada. O que está em causa mesmo é se o refrão que repetes é o “Aleluia”.

Na Assembleia de Deus de Mem Martins onde estou sentado, a noiva ainda não entrou e o instrumental não pára. A parte mais impaciente de mim já quis abandonar o ritmo não-europeu deste casamento que teima em não começar. Mas sei que este lugar ocupado por expatriados mais soltos do relógio é o indicado para me lembrar da tal exigência da adoração. Esta Igreja Evangélica de emigrantes na linha de Sintra representa na perfeição a intromissão que o louvor implica. Louvor não é o que fazemos por estarmos certos no tempo e no espaço. Não. Louvor é também o que acontece nos nossos atrasos mais espalhafatosos e nos locais mais errados. Louvor é quem eu sou quando tudo falhou, como lembrava o Leonard. Cristo teve o momento mais público da sua vida na hora e no lugar do fracasso mais cósmico. A cruz é Deus a reprovar nos testes mais imediatos que lhe fazemos.

Finalmente o casamento começa e o loop do “Hallelujah” termina. Vejo o noivo e a noiva chegarem. Junto-me me ao cântico na acústica difícil da sala. Refreio as emoções porque aos 45 anos estou um sentimentalão sempre que o assunto é estrangeiros vivendo de promessas. Na verdade, ninguém tem lugares ou horas que sejam naturalmente seus. Portugal pertence-me tão pouco como me pertence a pontualidade. Quem realmente somos, com mais ou menos existencialismo-pop, vê-se quando cantamos “Aleluia”. A partir daí, sim, alguma terra e algum tempo podem ser nossos.

Deus abençoe a Anita e o Savita!

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