A Iniciativa Liberal apresentou uma proposta para ser discutida na Assembleia Municipal de Lisboa, e chamou-lhe “Assumir e Promover a Responsabilidade na Reabilitação Urbana”. Documento curioso. Não tratava, como o próprio nome indica, de promover a reabilitação urbana propriamente dita, convém ler os títulos com atenção. Estes deputados olharam para Lisboa, estudaram, interpretaram, e chegaram à conclusão de que os edifícios ruíam por motivos de irresponsabilidade dos cidadãos. E, munidos da necessária condescendência, propuseram-se educar os cidadãos, como quem educa miúdos adolescentes procurando instruí-los nos princípios básicos da responsabilidade. Pessoalmente, agradeço-lhes. Não pela instrução cívica, mas por terem concebido, na forma deste documento, uma metáfora que me serve na perfeição para exemplificar o que tem sido a acção política da Iniciativa Liberal, tanto na Assembleia Municipal de Lisboa, como na Assembleia da República e no país.

A Iniciativa Liberal tem o coração no sítio certo, e a cabeça, muitas vezes, também. Outras vezes falta-lhe a experiência. Nascida nos blogues, concebida no Porto pelos sábios das tertúlias e do jantarismo, deseducada nos jornais ao colo da esquerda, falta-lhe uns anos de prática e muita observação, daquela que assenta com o tempo. Ainda não se apercebe do alcance e consequências de certas políticas.

Neste caso, a proposta dividia-se fundamentalmente em dois pontos. O primeiro expressava uma vontade legítima e estimável de aliviar a pressão fiscal e favorecer as pessoas que reabilitam. Este benefício seria accionado com a entrada do pedido de licenciamento na Câmara de Lisboa. O segundo mostrava onde andava o erro. Era o ponto da penalização, para “evitar os falsos pedidos de licenciamento”. Criava um novelo jurídico e administrativo e aplicava um agravamento fiscal a quem “não cumprisse todos os requisitos”. A própria proposta demorava vários parágrafos a explicar como haviam de pôr em prática esta severíssima cautela.

Ficou a impressão de que os deputados da IL pensaram numa ideia boa e quiseram discuti-la. Num segundo momento, com receio da resposta da esquerda, ou até já moralmente condicionados pelos padrões da esquerda, aplicaram-lhe um penso e o penso era pior do que a ferida.

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Porque aliviar a carga fiscal é uma óptima ideia. Mas, logo em seguida, punir os proprietários que ousarem tentar tem um efeito dissuasor, e também é uma injustiça de todo o tamanho. Quem quer fazer obras mete-se no labirinto infernal que a própria IL reconhece existir e descreveu no texto da proposta. Um pesadelo sem fim. Dois anos, para resposta a um pedido de licenciamento, era a média que a Câmara anterior admitia. Mas não é o que se passa nem o que dizem os investidores. Eu sei, por experiência própria, que é plausível e frequente esperar oito anos para ter um licenciamento aprovado.

O que nenhum promotor pode ter é algum vestígio de previsibilidade. A legislação tem articulado incompatível. As regras são de tal maneira extensas, de tal maneira complicadas e malsãs, que quem submete um projecto à apreciação da Câmara fica preso nas mãos do arbítrio. Com esta proposta, os deputados da IL – sem o querer fazer, acredito – estavam a legitimar a desconfiança do Estado perante os cidadãos. Em Portugal, quem quer mudar seja o que for, e pede ao Estado uma autorização, em princípio é um oportunista e um velhaco, alguém que vem para cometer uma patifaria. E o Estado, até prova em contrário, precisa de se defender.

Da parte de um partido que chama a si próprio “liberal” esta atitude ainda faz um bocadinho mais de confusão. Devia ser ao contrário. O Estado é quem tem o monopólio da força, quem tem a autoridade, os instrumentos e o poder. A força dos cidadãos está muito fragmentada, mesmo para aqueles que venham com as piores intenções. Este desajuste, que pende a favor do Estado, e faz passar o Estado de servidor a déspota, é a marca da esquerda e do pensamento autoritário esquerdista. Para passar pela política e não se dar por ele é preciso não ter lido nada, não pensar senão nos clichés que os jornais e as televisões do regime nos repetem, como realejos; é preciso não fazer ideia do que é confiança, iniciativa, e responsabilidade. Em bom rigor, é preciso não conhecer a liberdade e os seus mecanismos. Às vezes parece que a IL nos quer libertar de tudo – da religião, da igreja, dos preconceitos, da arte, da tradição, do “sistema” – sem compreender que isso não lhe compete. Não está sequer nas suas mãos. O que compete a um partido político está na relação do indivíduo com o Estado. É só isto, e isto não é pouco. Se a IL não servir para nos libertar do Estado, então serve para quê?

Sem contar que este ponto punitivo da proposta, caso os deputados conseguissem aprová-lo, teria ainda outras duas consequências. Uma delas era proporcionar o crescimento da máquina burocrática e administrativa, como se ela precisasse de ajuda. Este monstro, que vive em todos os cantinhos de Portugal, alimenta-se a si mesmo e cresce sozinho. Basta ficarmos quietos. Dispensamos, todos os contribuintes, e sobretudo os promotores de qualquer actividade produtiva, que a IL venha contribuir com a sua virtude e o seu zelo. A outra consequência era tornar fácil que se transformasse um processo de penalização numa simples fonte de obtenção de receita, através da nebulosa regulamentar. No fundo, a proposta da IL, com boas intenções, em vez de aliviar acabava por legitimar uma série de erros e abusos. Não admira que o Partido Socialista tenha gostado tanto dela.

Por um conjunto insólito de circunstâncias, o primeiro ponto foi aprovado e o segundo foi rejeitado. Maravilhas da democracia. Contra a vontade de quase todos os partidos, a Assembleia decidiu bem.