Tarde amena de Domingo, 12 de outubro de 1980: dia em que nasceu a Alice Silva. Filha única. Descendente de uma família com rendimentos modestos. Desde cedo, a Alice testemunhou o empenho que o pai dedicava à profissão de pintor. A mãe foi guia turística em Sintra: 20 anos agradáveis a promover património cultural português pelas arcadas do Palácio da Pena.

Durante a juventude, foram vários os cinemas e jantares que a Alice teve de declinar. Não por falta de vontade. Mas por implicarem um custo que os pais nem sempre tiveram capacidade de suportar. “Frigorífico suficientemente abastecido”: prioridade cautelosa dos “Silva”. Jamais alvo de contestação pela Alice. Azar dos amigos que apreciavam a sua companhia.

Desde cedo habituada a presenciar algumas desagradáveis vicissitudes da vida, a Alice viu, por duas vezes, os pais desempregados. E viu, por duas vezes, os pais beneficiarem do subsídio de desemprego: circunstância que, desde tenra idade, lhe serviu de incentivo para ingressar no ensino superior. Público. Não por preferi-lo ao privado. Mas porque não teve alternativa. Liquidou as propinas da Universidade de Lisboa com os rendimentos que auferiu numa modesta drogaria em Porto Salvo. Quando aí desempenhou, por três anos, a posição de “assistente de call center”, cargo que tantas vezes a impediu de assistir à primeira aula do curso pós-laboral. Orgulho e angústia: a miscelânea de sentimentos que ainda hoje a assaltam quando ouve um telefone tocar. Teme que algum dos filhos tenha de passar por experiência idêntica.

A Alice sempre considerou que a liberdade de escolha de uns é diferente da liberdade de escolha de outros (constituindo o acesso à educação, para si, um exemplo paradigmático disso mesmo). E sempre imputou ao Estado a responsabilidade de pugnar por uma sociedade livre de desigualdades.

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Começou por viver num modesto T2. Arrendado. Antes: quatro bancos; quatro tentativas de contrair um empréstimo; quatro “nãos”. “Boa tarde, volte quando o seu vencimento for… Ôhh ah, quero dizer: permanecemos ao seu dispor”. Sonho de infância adiado. Mas que sempre acalentou: “Um dia terei a minha própria casa”, repetia para si, vezes sem conta, na incerteza de o poder concretizar.

Desempenha orgulhosamente a profissão de escultora. Não aufere uma fortuna. Mas faz o que gosta. E paga baixos impostos. Aos fins de semana vê no teatro uma boa e económica oportunidade de lazer. Nas férias costumava refugiar-se em Portimão para um merecido descanso com o Ricardo. Em tempos, a sua maior vontade foi lutar por um País das Maravilhas. Um País das Maravilhas, à luz dos seus lindos olhos azuis…

Tarde amena de Domingo, 12 de outubro de 1980: dia em que nasceu o Salvador Queiroz. O mais velho de quatro irmãos. Descendente de uma família financeiramente abastada. Tem no pai, empresário de sucesso, o maior ídolo. A mãe, embora nunca tenha trabalhado, sempre foi extremamente dedicada à família. Todas as semanas entupia o frigorífico com alimentos necessários e outras iguarias saborosas, mas supérfluas. Durante a juventude, foram vários os cinemas e jantares que o Salvador teve de declinar. Não por implicarem um custo. Mas por culpa das aulas de piano. Azar dos amigos que apreciavam a sua companhia. E a generosidade com que oferecia bons almoços.

O Salvador nunca viu o pai desempregado. À semelhança dos três irmãos, desenvolveu o seu percurso académico no ensino privado. Por preferi-lo ao ensino público. E por poder escolhê-lo. Sempre encarou a liberdade individual como um direito fundamental. E sempre considerou que o Estado português limita esse direito. Administrador de três empresas – património de família – todos os meses, o Salvador enfrenta uma sensação de “asfixia”. Não por falta de ar. Mas pelos elevados impostos que paga: os quais, por diversas ocasiões, o fizeram equacionar emigrar.

Começou por viver num vasto T7. Herança de família. Desempenha orgulhosamente a profissão de gestor. Aos fins de semana vê no golfe oportunidade para desligar. Nas férias costumava refugiar-se na Quinta do Lago para passar um merecido descanso com a Isabel. Em tempos, a sua maior vontade foi lutar por um País das Maravilhas. Um País das Maravilhas, à luz das suas convicções…

Em 2017, a Alice terminou a sua relação com o Ricardo. No mesmo ano, o Salvador terminou a sua relação com a Isabel.

Em 2018, por ocasião de uma exposição de arte da Alice, o Salvador visitou o Museu Berardo. Ali se conheceram e travaram um diálogo, que iniciou uma boa e profícua relação entre ambos. De amizade, primeiro. Amorosa, depois. Inicialmente, os debates ideológicos eram acesos: a Alice hasteava a sua bandeira socialista na cara do Salvador; o Salvador hasteava a sua bandeira neoliberal na cara da Alice. Mais tarde, o bom senso fê-los perceber que também no espectro ideológico era mais o que os unia do que aquilo que os separava.

A Alice, que outrora invejava Salvadores, afinal sempre soube que: 1) as oportunidades que não teve não são responsabilidade do Salvador nem de pessoas com iguais ou melhores condições financeiras que o Salvador; 2) para se alcançar uma sociedade livre de desigualdades, não é justo tributar-se em excesso os rendimentos do Salvador ou de pessoas com iguais ou melhores condições financeiras que o Salvador; 3) a solidariedade, embora constitua um valor louvável, não se deve impor, antes incutir.

O Salvador, que outrora desprezava Alices, afinal sempre soube que o (neo)liberalismo propicia: 1) a especulação de preços, a usura e o abuso de posições dominantes; 2) a exploração do empregador pelo trabalhador; 3) a concentração de riqueza “nos do costume” (expressão tantas vezes utilizada pela Alice em conversas com o Salvador).

Hoje, a doutrina marxista já não é referência para a Alice. Reconhece que se tivesse nascido no seio de uma família idêntica à do Salvador teria sido neoliberal convicta. Hoje, o Salvador já não tem em Adam Smith um mentor intelectual. Reconhece que se tivesse nascido no seio de uma família idêntica à da Alice teria sido socialista convicto. São moderados. Casados. Têm três filhos. Um dos quais adotaram. Vivem num razoável T4. Com um frigorífico suficientemente abastado. E apesar das particularidades de cada um, entendem-se bem. A Alice valoriza o facto de o Salvador não ter emigrado – o que teria frustrado a possibilidade de o conhecer. O Salvador valoriza o esforço da Alice para prosseguir os seus estudos – determinante para a conhecer. Nenhum olvida que as desigualdades existem. Nem que a liberdade, por vezes, escasseia. Sabem, porém, que não é no extremo que a solução se alcança. E concordam que o alegado moralismo subjacente às correntes liberais e igualitárias é uma ilusão tão profusa quanto o País das Maravilhas.