Abunda preocupação social quando um menino prefere brincar com as bonecas ou utilizar o cor-de-rosa. Ou quando uma menina gosta de brincar com carros, jogar futebol ou prefere calças e não saias.

Ora, não basta o país ter ficado indignado com os blocos/cadernos de atividades elaborados diferencialmente para meninos e meninas pela Porto Editora, porque o simples brincar é condicionado pelo desenvolvimento de falsas crenças, que obstaculizam a liberdade de escolha das crianças. É precisamente na educação pré-escolar que devemos iniciar um processo de favorecimento de ambientes reflexivos, com vista à erradicação paulatina destas montagens sociais.

Vários estudos informam que as crianças estão propensas ao uso de estereotipias. Nomeadamente, o processo de tipificação sexual, que emerge antes do nascimento da criança, precisamente no momento em que os pais tomam conhecimento do sexo do bebé. Depois, entre os dois e os seis anos de idade, assistimos ao auto e hétero reconhecimento do sexo de pertença por parte das crianças, iniciando-se um processo de adequação do seu comportamento, adveniente da sua interiorização gradual dos papéis de género. Neste entendimento, as nossas esponjas são as primeiras a detetar o não cumprimento dos papéis padronizados, na medida em que são influenciadas a emitir raciocínios, por exemplo, relacionados com brincadeiras, brinquedos, cores, que associam ao seu sexo ou ao sexo oposto, oriundos de uma reprodução social de comportamentos atribuídos à mulher e ao homem, definidores do que devem ser e fazer.

Em perfeita desarmonia com o século XXI, encontramos uso nos ditos «velhos estereótipos de género». Por exemplo, às meninas associa-se o uso de roupa cor-de-rosa, enquanto os meninos são vestidos de azul; as meninas devem brincar com as bonecas, enquanto os meninos devem preferir os carros. E as crianças acabam a associar a capacidade para exercer determinadas profissões em função da grelha de análise fornecida pelos estereótipos e do entendimento do que cada um dos sexos (masculino e feminino) «consegue» ou «não consegue» realizar.

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A fim de desconstruir falsas crenças, não basta sensibilizar – trabalho que a escola tem vindo a desenvolver –, mas sim urge procurar um profícuo envolvimento!

Considerando que é um facto comprovado que pais/encarregados de educação e profissionais de educação estão propensos ao uso de estereótipos de género e que estas representações sociais estão de tal forma enraizadas que os adultos, inevitavelmente, acabam por as transmitir às crianças, desde a nascença, torna-se fulcral a tomada de consciência de que é necessário encarar de modo flexível a diversidade de papéis.

Para o efeito, a procura da reflexão por parte dos educadores, o envolvimento significativo dos pais/encarregados de educação, bem como a participação da restante comunidade educativa é fundamental para um maior impacto da ação educativa em torno da saudável compreensão da diversidade, da singularidade e da eliminação de expectativas diferenciadas, tendo em conta o sexo de pertença.

Na qualidade de educador de infância e confrontado com a evidência de que as questões alusivas ao género integram o quotidiano escolar e que subsistem dificuldades na sua abordagem, iniciei um processo de investigação-ação. Nomeadamente, realizei registos de observação, inventariei atividades e recursos (livro, intitulado Pipi e Popó – apenas para quem educa!), a fim de agir perante a variabilidade que me foi possível observar na sala do pré-escolar (por exemplo, um menino a brincar com uma boneca ou uma menina a brincar com um carro, entre outros comportamentos e pensamentos) e que constituía o mote para a verbalização, por exemplo, dos seguintes raciocínios estereotipados, que, de certo modo, obrigavam algumas crianças a estar perfeita sintonia com a ideologia de género: «os meninos é que brincam com carros»; «as raparigas brincam com as bonecas e os rapazes brincam com as coisas dos rapazes»; «os meninos ficavam a brincar com as bonecas e os outros gozavam dele»; «as raparigas não gostam de azul. Os meninos é que gostam»; «os homens apagam o fogo e as mulheres não».

Note-se que estudos efetuados chamam à atenção para as consequências negativas (quer a nível individual quer coletivo) resultantes do desenvolvimento de visões limitadas de um mundo, onde, indubitavelmente, a singularidade e a diversidade irá sempre coexistir.

Neste entendimento, após a realização de reuniões periódicas com os pais/encarregados de educação, educadores e restantes forças vivas da comunidade educativa (agentes da polícia de segurança pública, bombeiras,…), com vista à explicitação da importância de desmontarmos os nossos próprios estereótipos, em espírito colaborativo, incidi a minha ação junto das crianças, a fim de lhes proporcionar gradualmente ambientes de aprendizagem reflexivos e promotores da desconstrução de estereótipos de género.

Por conseguinte, concluí que as crianças integraram práticas não sexistas e que, quando conduzidas a refletir sobre o assunto, exteriorizaram um conjunto de vivências familiares, até então desconhecidas: «o meu irmão brinca com barbies»; «eu brinco com carrinhos com o meu primo»; «a minha mãe também fez a minha casa». Ainda, aferi que cabe aos educadores, em estreita colaboração com a comunidade: 1) a criação de iniciativas que possibilitem mostrar como os estereótipos influenciam todos os aspetos da vida das crianças e dos adultos e 2) a realização de atividades, com vista à estruturação de bases sólidas de cidadania, onde a convivência saudável com a singularidade e a diversidade deve ocupar uma posição de relevo.

Educador de Infância, Professor do 1.º Ciclo, Investigador e Formador na área da educação para os afetos e sexualidade e Autor.
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.