Moral license, eis um conceito cada vez mais analisado pelos especialistas em comportamento. Um estudo da Universidade de Stanford define moral license como a permissão que alguém concede a si próprio para agir sem respeitar a ética, ou até para se envolver em situações moralmente reprováveis, só porque no passado teve bons comportamentos.

Arménio Rego, professor na Católica Porto Business School, e Miguel Pina e Cunha, professor na Nova SBE, ambos investigadores reconhecidos e premiados pelos seus estudos e publicações, assinaram um artigo conjunto sobre moral license, que definem desta forma: “A licença para prevaricar (adaptação livre do conceito) representa a tendência para nos sentirmos mais livres para agirmos menos corretamente depois de termos adotado ações moralmente elevadas. Após termos adotado atos generosos ou moralmente elevados, formamos uma identidade perante nós próprios e os outros, de pessoa boa, ética e com caráter. Sentimo-nos depois mais livres, menos constrangidos, para fazermos o que queremos realmente fazer.”

Interessante. Muito interessante, mesmo. E, posto desta forma, vem mesmo a propósito pois a licença moral para prevaricar aplica-se a incontáveis casos que vamos conhecendo na política, nos negócios e em tantas outras áreas. Aparentemente, o fenómeno explica-se em modo flashback, olhando ao passado de cada um. Se lá atrás houve ética, coragem, bons comportamentos, boas práticas e até bons resultados, o sujeito que age mal, e o faz sem remorsos, acha que pode dar-se ao luxo de prevaricar, autojustificando-se por essa boa conduta no passado.

Aparentemente, a autoridade moral que cada um se atribui a si mesmo é bastante elástica e não pensemos que esta amplitude se aplica apenas às figuras e figurões nacionais e internacionais que, pelas piores razões, enchem as primeiras páginas dos jornais, ou povoam os telejornais do mundo inteiro. Pode haver uma inclinação natural para nos concedermos prevaricar “só” porque nos portámos bem em alguma altura, no passado. A diferença está no impacto que essa prevaricação tem nos outros.

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Numa escala individual, quem é que nunca se concedeu licença para abusar dos doces porque foi correr na véspera? Ou quem é que pode acusar outros de não reciclar, se por vezes também se permite não reciclar o seu próprio lixo por estar cansado ou não haver contentores nas redondezas. Ou, ainda, quem pode considerar-se ecológico, só porque no passado militou em causas ecológicas, mas em casa desperdiça água e abusa dos plásticos? E por aí adiante.

Podemos viver na ilusão de sermos pessoas irrepreensivelmente éticas por termos uma folha limpa, pontuada por causas e coisas, marcada por atos éticos do passado. Ora, o conceito de licença moral vem iluminar as sombras do mundo, mostrando que não podemos encontrar justificações para o presente, tendo em conta o passado. Ninguém é para sempre aquilo que já foi, a não ser que faça um esforço consciente para permanecer fiel aos valores éticos.

É-nos muito fácil perceber o conceito quando aplicado a terceiros, sobretudo quando o foco incide no universo da retidão política, dos comportamentos sociais e das estratégias que condicionam ou induzem as escolhas dos consumidores, para dar apenas três exemplos que reconhecemos. As más ações de outros fazem-nos repensar os seus créditos morais, é certo, mas também nos levam a refletir sobre as nossas pequenas e médias auto concessões.

Os estudos feitos e publicados sobre moral license convergem num ponto de partida, que é também um ponto de chegada: as boas ações do passado não justificam as más ações do presente. Talvez ajudem a calibrar o julgamento sobre alguém acusado de má conduta, mas não chegam para inocentar. Aliás, os exemplos internacionais sucedem-se, mas dou apenas um, por ser recente e conhecido: o predador sexual Harvey Weinstein, condenado para o resto da sua vida por abusar de centenas de mulheres, no passado também participou em marchas solidárias pelos direitos das mulheres.

Como ele, muitos outros se dão licença para abusar por terem tido comportamentos generosos, fiando-se demasiado na opinião que formaram sobre si próprios e acreditando que podem fazer o que querem por já terem cumprido a sua quota de boa ética, por assim dizer. Por ser uma inclinação humana universal, a questão da licença moral é crítica, pois qualquer um de nós pode ser vítima das suas próprias desculpas. Todos temos as nossas contradições e os estudos sobre licença moral evidenciam-nas, sublinhando que nenhuma má ação presente pode ser desculpada por boas ações passadas. Ninguém é inquestionável, portanto.

Esta certeza tem que nos interpelar e pôr certas coisas em perspetiva. Mesmo que haja demasiadas perguntas sem resposta, é importante tentar perceber como estamos a enfrentar os desafios morais e as incertezas éticas da nossa vida atual. Um caráter impecável é para sempre impecável? Alguém com um passado intocável pode ser julgado apenas pelo seu passado, independentemente das más ações do presente? Não pode.

Está estudado que as pessoas que se concedem licença moral para agir de forma condenável, partindo da autossatisfação que lhes dá terem um passado marcado por gestos éticos, tendem a sentir-se bem consigo próprias e por vezes nem sequer sentem que estão a ser imorais. Muito pelo contrário, justificam tudo através desse passado. E, mais uma vez, os exemplos se sucederiam até à náusea, se coubesse aqui enunciá-los. Aliás, se a própria lista coubesse no espaço de um jornal.

Volto ao artigo de Arménio Rego e Miguel Pina e Cunha para tomar de empréstimo uma das seis implicações que referem no final. Estes dois autores e investigadores aplicam as suas conclusões a contextos de líderes e liderados, mas eu gostava de usar uma delas de forma mais generalizada e abrangente: “Devemos estar mais atentos, devemos adotar uma atitude de confiança “desconfiada” ou vigilante. Ou seja, confiar, mas com limites.” Atentos e vigilantes com os outros, sim, mas acima de tudo connosco próprios, não vá acontecer-nos lutar hoje na rua contra todas as formas de racismo e discriminação e amanhã sermos apanhados a tratar alguém menos bem.