Foi num destes Sabádos, em pleno mês de Janeiro, que parti numa incursão matinal por Lisboa. A minha Lisboa, de tanta gente também. Queria ver e sentir esta cidade no seu estado mais puro.  A Lisboa “cheia de encanto e beleza, sempre a sorrir tão formosa”, entoada no timbre irrepetível de Amália.

Já sabia aquilo que queria encontrar, daí não se ter tratado de uma verdadeira incursão, que pressupõe a intenção de descobrir qualquer coisa nova. No limite, terá sido um passeio por Lisboa. E isso basta!

Descendo o Chiado e passando pela Baixa Pombalina, depressa me esgueirei pelas Escadinhas de São Crispim, que ligam a Rua de São Mamede, perto da Sé, à Costa do Castelo e à Rua dos Milagres de Santo António, nascido Fernando de Bulhões. Não sei quantos degraus são, mas seguramente os suficientes para estafar alguém que não tem o desporto como a prioridade mais imediata da sua vida e que admite preferir uma boa comezaina a um jogging a beira-mar.

Neste percurso tão pequeno, mas com tantos degraus, ainda encontrei vestígios da Lisboa genuína. A Lisboa dos nossos Avós!

As escadinhas são ladeadas por pequenas casas modestas e sem qualquer pretensão, muitas delas descuidadas no seu exterior mas ainda assim com grande carácter.

Casas “humildes, mas limpinhas”, como depressa denunciam os lençóis brancos, já gastos por uma vida inteira de uso e lavagens sucessivas, a esvoaçar alegremente no ar gélido e seco daquela manhã de Sábado. Era isto que eu queria encontrar. Lisboa como ela é. Lisboa como nunca poderá deixar de ser! A Lisboa “gaiata, de chinela no pé”, como nos cantou a Rainha do Fado.

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Ainda antes de chegar ao Castelo, passei por uma tasca tipicamente lisboeta e que naquela manhã acordava para receber os seus primeiros fregueses. A ementa, escrita numa toalha de papel com caligrafia tosca e básica em tamanho garrafal e tons de azul, já tinha sido estampada no vidro de entrada pelo seu proprietário. Um homem de feição bonacheira, já entradote e ligeiramente curvado pela passagem de uma vida inteira de trabalho honesto.

Envergava uma camisa branca, já transparente, e que depressa ganharia duas ou três nódoas de gordura no docorrer do árduo dia que se avizinhava. Era uma tasca tipicamente lisboeta. Como já há poucas. Uma tasca resistente. E que só o é graças à fidelidade dos seus estoicos fregueses, que desde a primeira hora de abertura debruçam as suas avantajadas corpulências sobre o balcão e de um só trago emborcam uma “rapidinha” para começar o dia da melhor maneira. Uma tasca tipicamente lisboeta. Daquelas onde se serve água, vinho ou um qualquer refrigerante num copo de pé baixo, de vidro grosso e bera. A tasca onde ainda se ouve o fiél habitué pedir um “café com cheirinho” para fazer melhor a digestão. A tasca das batatas fritas estaladiças, grosseiramente cortadas pelas mãos roliças de uma cozinheira também ela de generosa aparência e que mercê da sua autenticidade jamais se auto-intitularia de chef. É esta a Lisboa “tão pura”, que Carlos do Carmo nos ensina.

Desci do Castelo em direcção às Portas do Sol. Aqui encontra-se a melhor vista de Lisboa. A do Miradouro de Santa Luzia. Contempla-se o Tejo, ladeado pelas Colinas de Lisboa e por telhados desalinhados, sempre protegido pelo olhar atento e incessante de São Vicente Mártir. Estamos em Alfama, “o bairro de mais fama, mais fadista, mais marujo”, imortalizado na voz penetrante de Alfredo Marceneiro.

A zona das Portas do Sol é para mim das mais bonitas de Lisboa. A vista sobre a cidade é soberba. E que gosto me dá ver que os turistas, vindos de todo o Mundo, vivem e experimentam, ainda que por escassos momentos, a cidade onde Deus quis que eu nascesse. Lisboa é muito isto…ou era!

É que foi igualmente neste meu trajecto que reparei em dois ou três restaurantes que diziam servir comida típica portuguesa. De toalhas aos quadradinhos encarnados e brancos para “fazer” o tipicozinho, com a pretensão de se assemelharem às genuínas tascas, como aquela perto das Escadinhas. Em todos estes restaurantes lia-se o anúncio “we have sardines” (“temos sardinhas”), escrito a computador e sem qualquer personalidade. Que desilusão atroz! Vender sardinhas em Janeiro!

Acredito que aquilo que melhor reflecte a autenticidade de um povo é a sua gastronomia. E a nossa, é de primeiríssima ordem. Tal como as casas das Escadinhas de São Crispim, a nossa gastronomia é simples e despretensiosa. E é por isso que se torna única e  tão apreciada. Estamos no coração de Alfama, o couto das varinas e dos seus pregões. A proclamação viva e entusiasmada “Óh vivinha da costa”, saída dos pulmões cheios de fôlego das nossas varinas, é agora substituído por um seco e desonesto “we have sardines”.

A sardinha é uma das jóias da nossa coroa. Como jóia digna desse nome, é rara e deve ser tratada com o maior dos respeitos. Tudo o que não se passou naqueles três restaurantes por onde passei e que em pleno mês de Janeiro impingem sardinhas aos pobres e ignorantes turistas que por lá passam.

É que a verdadeira dignidade da sardinha reside precisamente na sua sazonalidade. Por se tratar de tão suculenta iguaria, não pode ser consumida durante todo o ano, sob pena de todos aqueles que a veneram – como é o meu caso – entregarem-se de corpo e alma ao pecado da gula, capital e de gravidade considerável.

E por isso mesmo, Deus nosso Senhor, sempre tão compassivo com o Povo Português, brindou-lhe com muitos outros deliciosos manás, poupando-o ao sofrimento da privação prolongada do gosto de bem comer.

Mas o pico da minha apoplexia, que já ia avançada, verificou-se quando num desses restaurantes me pareceu ver alguém servir a um turista um prato de sardinhas com batatas fritas. Sim, a um turista! Pois qualquer português digno dessa honrada condição jamais toleraria tamanha profanação. Era um género de fish and chips, mas à portuguesa. A salada de alface, tomate e pimentos assados, nem vê-la! As batatas “a murro”, prontamente substituídas por umas congeladas e aos palitos uniformes, em que nada se assemelhavam, em sabor e aspecto, às preparadas pela senhora de mãos sapudas. Pobre turista! Jamais iria experimentar o sabor daquela última batata cozida, meia desfeita e de aspecto grosseiro, embedida no azeite misturado com os óleos libertados por uma sardinha fresca, que altruísticamente concedeu em sacrificar a sua preciosa vida para mostrar a verdadeira essência de Lisboa.

E é por isso que tantas vezes digo que os turistas não constituem a maior ameaça à autenticidade que ainda se experimenta em algumas zonas de Lisboa. A maior ameaça é-nos imposta por aquele conjunto de portugueses complexados e que não honra a sua tão nobre condição. Os portugueses que deixam de se relacionar com os outros com a naturalidade que é-lhes tão característica, neste caso através da comida. Perde-se espontaneidade. Perde-se autencidade. Perde-se a alma! O maior perigo à nossa pureza gastronómica é o português que, imbuído de uma efervescência criativa, importa ideias “lá de fora” e a todo o custo quer incorporá-las nos nossos belíssimos manjares. Sardinhas com batatas fritas, onde é que já se viu!

Não fiquemos por isso admirados quando no cardápio de uma destas rústicas “taskas” – sim, porque em algumas delas o “C” de Camões caiu ou cairá para dar lugar a um robusto “K” cheio de significado – nos detivermos perante alguns pratos típicos cheios de história, como o risotto de lampreia, o vol-au-vent de pezinhos de porco de coentrada, o bacalhau à brás cozinhado em azeite de trufa ou o bitoque com ovo a cavalo acompanhado de um gratin dauphinois.

E assim assistimos a nossa querida Lisboa perder a sua autenticidade, por pequenos comportamentos como estes. A nossa Lisboa dos manjericos, dos becos, das marchas e das procissões. A Lisboa das sardinhas no Verão, ferida de morte e entregue nas mãos desonestas daqueles que, por imposição da sua lusa e alfacinha condição, deveriam ser os nossos mais empenhados embaixadores.

O autor não segue a grafia do novo Acordo Ortográfico.