A minha primeira e muito enfática recomendação de livros para férias de autores nacionais (há duas semanas recomendei aqui livros de autores estrangeiros) vai para a colectânea póstuma de textos de José Cutileiro: podia ter sido pior: Escritos 1953-2020 (Dom Quixote, 2021, com Prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa e Introdução de Myriam Sochaki-Cutileiro).

Permito-me enfatizar a disposição liberal-democrática de profunda inspiração anglófila que subjaz aos textos de José Cutileiro. Marcelo Rebelo de Sousa muito certeiramente recorda no seu Prefácio a fundamental sintonia entre José Cutileiro e Victor Cunha Rego — quando este hospedou no jornal Semanário os famosos “Bilhetes de Colares” de José Cutileiro/A. B. Kotter (e, em bom rigor, ainda antes).

Sob a inspiração de Marcelo Rebelo de Sousa, permito-me sugerir um outro título para férias: Na Prática a Teoria é Outra: escritos 1957-99, de Victor Cunha Rego (Dom Quixote, 2018, com Prefácios de José Cutileiro, Otavio Frias Filho, Manuel de Lucena e José Miguel Júdice; Edição organizada por Vasco Rosa e André Cunha Rego).

Talvez a recordação simultânea de José Cutileiro e de Victor Cunha Rego — sugerida por Marcelo Rebelo de Sousa — possa ser inspiradora para os tempos em que vivemos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

José Cutileiro e Victor Cunha Rego (de quem tive o privilégio de ter sido amigo e admirador) foram inicialmente educados à esquerda, pela sua comum oposição à muito saloia e monista ditadura do chamado Estado Novo. Estiveram ambos enfaticamente com o 25 de Abril de 1974, quando a ditadura caiu. A seguir, durante o chamado PREC, ambos entenderam o seu comprometimento liberal-democrático como firme oposição à ameaça monista-comunista e como firme defesa das regras gerais da democracia liberal. Por essa profunda razão, ambos apoiaram Mário Soares e a resistência liberal-democrática contra a tentativa de golpe de estado comunista de 25 de Novembro de 1975.

Depois dessa opção demo-liberal fundamental — consonante  com a sua comum tradição de oposição à saloia ditadura monista do Estado Novo — José Cutileiro e Victor Cunha Rego terão gradualmente enfatizado o seu cepticismo relativamente a uma concepção estatista (ainda que democrática) tendencialmente dominante entre os socialistas. Essa evolução gradual está patente nos textos incluídos nos dois livros que enfaticamente recomendo.

É importante recordar simultaneamente, sobretudo nos dias que correm, que a evolução de José Cutileiro e de Victor Cunha Rego, para o que poderíamos designar centro-direita a partir do centro-esquerda, nunca colocou em causa a democracia liberal do Ocidente. Bem pelo contrário, essa evolução foi feita em nome da democracia liberal — e, precisamente por causa disso, sempre manteve o respeito pelas opiniões de centro-esquerda de que crescentemente vieram a discordar. Acima de tudo, ambos mantiveram sempre o respeito e a defesa intransigente das regras gerais de boa conduta (gentlemanship) que definem as democracias liberais — e que ambos viam como subjacentes a uma efectiva concorrência civilizada entre direita e esquerda democráticas.

É precisamente neste mesmo espírito demo-liberal que me permito sugerir um terceiro livro para férias: Cidadania, sempre, de Jorge Miranda (Universidade Católica Editora, 2022). Trata-se de um pequeno grande livro que, segundo explica o autor, “reúne artigos de jornais, entrevistas, intervenções e outros textos, uns de pendor mais jurídico, outros de pendor mais político, um ou outro autobiográfico.” O espírito que subjaz à colectânea é claramente definido pelo autor: “a participação cívica, a cidadania, sempre”.

Numa época infeliz, em que tantas inovadoras modas tribais, à esquerda e à direita, atacam as ancestrais regras civilizadas de boa conduta e gentlemanship que subjazem às democracias liberais, aqui ficam três sugestões de três grandes autores nacionais — dois infelizmente já nos deixaram. Recordam-nos a importância crucial da velha tradição de pluralismo tranquilo que distingue o Ocidente — e que tem as suas raízes na conversação pluralista entre Atenas, Roma e Jerusalém.

Post Scriptum: Vozes amigas dizem-me que um tal sr. Orban terá discursado contra a chamada “mistura de raças” na Europa e no Ocidente. Não li a notícia e raramente vejo televisão. Mas conheci-o em tempos, em Budapeste, quando era um gentleman, e disse-me ter também estado em Oxford. Não devo, por isso, ser desagradável para com um old chap. Mas Jane Austen certamente me autorizaria a recomendar-lhe que — uma vez que fala em nome de uma alegada “direita conservadora” — voltasse a ler mais assiduamente os conservadores Telegraph e Spectator de Londres (o que eu faço com gosto e proveito todos os dias). Acontece que estas publicações conservadoras de referência estão precisamente a celebrar a variedade e miscigenação “racial” (eles não usam esse termo, que atribuem à reaccionária esquerda radical) protagonizada pelos candidatos à liderança do Partido Conservador britânico.

Boas férias e boas leituras (conto estar de volta a 5 de Setembro).