Admito que possa não ser um título feliz. Ser-me-ia mais útil fingir que, neste momento, não está em causa um profundo sofrimento de pessoas concretas e que a escrita, por vezes, pode alterar destinos. Mesmo que não deposite grande fé na literacia das autoridades angolanas.

Na mais elementar dimensão humana e civilizacional, o caso dos ativistas angolanos condenados e presos é por demais óbvio. Estamos perante um regime condenável por atuar com violência desumana contra indivíduos indefesos que o incomodam.

E não existem especificidades africanas em matérias de direitos humanos ou de liberdades políticas. Trata-se de países cujos poderes pós-coloniais, desde a sua génese, tudo fizeram para confundir independência com liberdade; esconderam e escondem o agravamento ostensivo da violência do estado sobre as populações a seguir às independências, sobretudo se pensarmos a questão entre os inícios dos anos sessenta e a atualidade; e que exibem retóricas de justiça e democracia, a última complemento nascido do colapso da URSS em inícios da década de noventa.

Ainda assim, os pressupostos referidos não anulam a complexidade sobre o que se está a passar em Angola. Tal reflete-se na fugacidade do debate político sobre o assunto em Portugal, incapaz de fazer sair da penumbra algumas das dimensões do dilema moral com que estamos confrontados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Para uns, comprometidos com a era revolucionária das independências, a fuga ao assunto evidencia embaraços detetáveis na não condenação do regime angolano. É o caso do PCP, cuja radical seletividade nas habituais avaliações do mundo que nos rodeia faz parte da sua génese, mas neste caso nem a habitual convicção saiu em defesa de uma razão também habitualmente desorientada. Para outros, cuja carga política é por norma ponderada por questões pragmáticas de outra natureza, mesmo comezinhas, a sua moderação e também tentação de fuga ao assunto tem em conta a necessidade de salvaguardar os interesses económicos portugueses em Angola, mas não menos necessidades de garantir o melhor possível a proteção da dignidade e da segurança de milhares de portugueses que vivem, trabalham ou têm de se deslocar ao país em causa. É o caso do PSD e do CDS, mas também do PS quando assume responsabilidades governativas. Num segmento à parte está a ala radicalizada à esquerda do PS e, sobretudo, a extrema-esquerda, o BE, partido de geração recente sem compromissos diretos com o passado. Para estes últimos é politicamente vantajoso ostentar uma cartilha moralista mais “pura”, radicalizando na condenação do regime angolano.

Ainda que nos cingíssemos à dimensão moral naquilo que há nela de mais elementar (respeito pela vida e pela dignidade de indivíduos e comunidades), é a atitude dos que se apresentam como campeões da bondade e da responsabilidade que acaba por ser, por excelência, questionável. Isso porque a radicalização da condenação do regime angolano não deixar de servir para omitir uma outra componente da dimensão moral do assunto. Esta tem a ver com a natureza dos ideais revolucionárias dos ativistas angolanos, Luaty Beirão incluído, associadas a teses de urgência do derrube do regime de José Eduardo dos Santos e de transformação profunda da sociedade angolana.

Os ativistas em causa estão manifestamente a tentar abrir a porta a uma nova experiência revolucionária em Angola, país cujos problemas e bloqueios crescentes da atualidade que espoletam novos ativismos revolucionários são precisamente, e em grande parte, produto da anterior experiência revolucionária, iniciada em 1974-1975.

A decapitação das elites (políticas, económicas, institucionais, sociais) constitui uma ambição intrínseca às tentações revolucionárias. Isso tem consequências inevitáveis em núcleos centrais que fazem funcionar quaisquer sociedades. Destaco a desregulação da autoridade que começa no estado e pode chegar às famílias. Para refazer a autoridade, isto é, para voltar a regular a vida social em benefício das populações, as experiências revolucionárias desembocam precisamente no reforço da repressão. Destaco ainda a desregulação das relações, das elites aos indivíduos comuns, com a propriedade (tradicional, individual-mercantil ou coletiva-estatal). Hoje o pretexto poder ser a corrupção, como no passado foi a exploração colonial. Independentemente de haver nisso um fundo de verdade, o facto é que a desregulação social da propriedade tem forte potencial para alimentar nas elites, mesmo que renovadas, a corrupção e nos indivíduos comuns a criminalidade (da pequena à qualificada). Torna-se bem mais provável que o crime, a prazo, seja remetido das periferias para o âmago da vida quotidiana, um dos focos alimentadores da pobreza endémica.

Se a tudo isso acrescentarmos a eventualidade de guerras civis pós revolucionárias que se podem arrastar no tempo, percebemos como e de onde nasce a anomia social, fenómeno que se autoalimenta e cujas sequelas tendem a prolongar-se por gerações. Tanto pior quando as sociedades nem sequer possuem a autoconsciência de viverem em estado de anomia. Angola e Moçambique são casos típicos.

Não é raro que esses contextos alimentem também fenómenos de regressão civilizacional. Os linchamentos populares de criminosos estão aí para quem tenha dúvidas.

Se os sintomas são visíveis no modo como funciona o poder tutelar do estado, incapaz de sedimentar uma ordem moral aceitável (a prisão e condenação dos ativistas reflete isso mesmo), olhando a sociedade de “baixo para cima” a situação não é menos patológica. Seja enquanto sequela dos ímpetos revolucionários dos anos setenta, seja enquanto sequela da longa guerra civil, ou outras tendências do passado recente, a sociedade angolana (como a moçambicana) tem os seus núcleos mais elementares e decisivos, as famílias, profundamente desregulados. O fenómeno espelha-se na transição acelerada de modelos de matriz tradicional (clânicos e rurais) para um tipo de família nuclear e urbana, sendo que o último foi gerado de forma abrupta e crescentemente pautado pela agressividade de um individualismo quase nascido do nada. A África do ideal da solidariedade comunitária passou rapidamente à história às mãos dos nacionalistas libertadores.

Os mais velhos, por seu lado, simplesmente perderam a capacidade de funcionar como referentes morais e de autoridade. O que veio em seu lugar, através da explosão de igrejas cristãs e cristãs-sincréticas (mescladas com rituais tradicionais africanos), visíveis em tudo quanto é bairro pobre, mal consegue mitigar as mais elementares necessidades de regulação da vida social a partir da casa de cada um.

Se a anterior herança colonial portuguesa, dada a sua capacidade de regular a vida social e de impor a autoridade do estado, permitiu que as sociedades resistissem por algum tempo aos sismos revolucionários dos anos setenta, novas experiências desse tipo no século XXI encontrarão terrenos sociais marcados pela anomia, mas não menos pela explosão demográfica e urbana, condições bem mais propícias a maiores hecatombes.

Com este quadro, a consciência impõe que exijamos a libertação dos ativistas angolanos, mas essa mesma consciência não permite que toleremos a esses ativistas revolucionários (ou outros) novas aventuras, precisamente o pretexto para a atuação bárbara do regime angolano. O facto é que uma dimensão moral do problema não é necessariamente dissociável da outra.

Entre não se tolerar o MPLA (ou a FRELIMO) pelos erros cometidos, por um lado, ou tolerarem-se novas experiências revolucionárias, por outro lado, será muitíssimo mais a primeira opção que melhor protegerá os que mais necessitam naquelas sociedades fragilizadas. Eles são a esmagadora maioria. Uma coisa é fazerem-se experiências revolucionárias na Europa de hoje, como na Grécia, outra profundamente distinta é instigá-las em Angola.

Não se alteram de ânimo-leve as relações entre as sociedades e os seus poderes tutelares sem ter garantias efetivas de que não se corre o risco de provocar hecatombes. A cartilha dos sábios chineses pós Mao Tsé-Tung ajuda a equacionar a questão. Não arriscaram loucuras revolucionárias em Hong-Kong ou Macau, antes preparam processos cuidadosamente negociados e cujas transições se arrastarão por meio século. No passado, em Angola e Moçambique a cartilha foi a oposta. Ao menos que se tenha aprendido qualquer coisa em quarenta anos.

De hipocrisias e irresponsabilidades que redundam em milhões de mortos está o mundo cheio. Elas são bem mais fáceis de detetar entre os que condenam justamente o regime de José Eduardo dos Santos, mas sem hesitar por não ponderarem o lugar do MPLA na regulação da vida social em Angola. Os mesmos que exigem com justiça a libertação dos ativistas angolanos, mas sem questionar as consequências morais, historicamente comprovadas, das utopias revolucionárias que os movem.