Graças à importância que os EUA têm no mundo, todos os povos conhecem a mítica devoção dos americanos à sua constituição. Veem naquele documento a trave mestra da sua unidade nacional, a justificação do seu patriotismo, além do cimento da sua forma de governo. Assim que a constituição foi ratificada, logo os americanos se lembraram de lhe acrescentar a Bill of Rights. Estavam a recuperar uma tradição constitucional muito mais antiga do que a sua própria experiência colonial, mas de que eles se consideravam herdeiros – talvez até os únicos herdeiros. Uma tradição constitucional que muitos remontavam, e ainda remontam, à Magna Carta de 1215. Mais, a constituição de 1789 e a Bill of Rights eram descendentes documentais de um outro texto: a Declaração da Independência de 1776, que tinha solenizado a rutura com a metrópole.

A primeira parte dessa Declaração da Independência, a mais famosa, falava de princípios abstratos, e incluía umas paráfrases de John Locke, o profeta inglês do liberalismo racionalista. Mas a segunda parte parecia todo um outro documento. Enumerava exaustivamente as queixas dos colonos; optava por uma retórica concreta e em certa medida arcaica; bradia contra o “tirano Jorge III” apesar de a ameaça provir do Parlamento em Westminster. No novo mundo que estavam a criar, os independentistas queriam situar aquela rutura na tradição de que a Magna Carta era um dos principais marcos. E conscientemente quiseram imitá-la.

Por aqui se vê que a história da Magna Carta tem duas partes nem sempre facilmente reconciliáveis. Em primeiro lugar, há a história do que levou à sua reivindicação, formulação e promulgação. É uma história difícil de penetrar dadas a escassez das fontes, a sua parcialidade e a linguagem medieval usada ser espessa como a neblina inglesa.

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Em segundo lugar, temos a história do seu futuro, por assim dizer. É a história de como aquele documento se converteu num alicerce de outra narrativa muito mais ampla e ambiciosa; de como ela se tornou num elemento quase mítico de uma “constituição antiga” politicamente explosiva e por vezes conservadora; de como, no fundo, a Carta foi um dos primeiros versos numa determinada epopeia europeia de progresso da Liberdade, com “L” maiúsculo. É a história que conta como a Carta se foi convertendo num libelo acusatório automático de tiranos e tiranetes. Ou numa invocação irrefutável das conquistas passadas de que o povo inglês, mais os seus lordes e bispos não estavam dispostos a abdicar. É verdade que nem sempre senhores, gentes livres e prelados estavam do mesmo lado da barricada, mas politicamente era infinitamente mais conveniente projetar no passado a unanimidade em defesa dos direitos contra o abuso do poder real.

1215 não foi a primeira revolta contra a autoridade régia em Inglaterra. E estaria longe de ser a última. A outros reis já tinha sido possível forçá-los a produzir cartas de reconhecimento de privilégios particulares, ou de imunidades a este ou aquele grupo. Além disso, naquele tempo não era incomum as comunidades receberem cartas régias a outorgar liberdades e privilégios. Em Inglaterra, o rei vendia essas cartas. Em 1200, João exigiu aos londrinos 2000 libras para confirmar os privilégios das suas comunas. Mas 1215 seria diferente porque a carta que se extraiu à concessão do rei João Sem-Terra reconhecia liberdades e direitos a todos os homens “livres”. É certo que continha artigos referentes a grupos funcionais e sociais específicos, à moda antiga. Mas o alcance geral da Carta era já outro.

A Carta foi nominalmente uma concessão “livre” do rei João Sem-Terra. Mas na verdade os barões já o haviam encurralado numa espécie de guerra civil. João perdera (quase) todo o património francês da família. Estava a braços com uma crise orçamental que punha a falência da Coroa a pouca distância. E tentou um malfadado braço de ferro com o magnificente Papa Inocêncio III – o mesmo Inocêncio que apoiaria João no seu tímido projecto de renegar a Carta, projecto definitivamente abortado com a morte do rei batido.

Derrotado por Filipe Augusto de França, derrotado pela aritmética orçamental e derrotado por Inocêncio III, João posava como presa muito fácil, não apenas das habituais reivindicações e queixas políticas, mas de um plano de reforma política. Usando a ambígua linguagem da Carta, a reforma podia resumir-se assim: precisamos de um governo pelo “julgamento” e pelo “conselho”. O que queria isto dizer?

Primeiro, que os procedimentos criminais e as práticas forenses seguissem a lei conhecida e que todos lhe estivessem sujeitos, incluindo o rei e os seus agentes, cujos caprichos não era lei nem comandavam obediência. No fundo, que fosse a lei a mandar (e não a vontade arbitrária de um homem), que todos os “homens livres” estivessem protegidos pela lei e que houvesse limites legais ao exercício do poder político.

Segundo, que o rei consultasse alguma forma de colégio antes de tomar decisões e produzir legislação. Que o processo de decisão incluisse membros da “comunidade do reino”, e não se confundisse com um assunto reservado da corte do rei.

Não era ainda o julgamento por um júri; nem a exigência da representação política para consentir no levantamento de impostos. Mas era, numa determinada tradição constitucional e política que a Carta ajudou a fundar, o seu embrião. E não era uma simples declaração de pompa política. Era lei fundamental e irrevogável. Ou pelo menos era a confirmação oficial das leis fundamentais e era a indispensável corretora das lacunas do direito consuetudinário. Assim seria até muito tarde. Mas nos nossos dias converteu-se sobretudo num símbolo, sem relevância jurídica.

Certas leituras dizem que a dita reforma era, afinal, apenas uma recapitulação de outros documentos, juramentos e cartas, sobretudo do lendário juramento de coroação de Henrique I. Fosse como fosse, o mote estava dado para a discussão política em Inglaterra durante sete séculos: a defesa da liberdade era sempre uma restauração da ordem antiga e que inovações aberrantes ameaçavam subverter, ou estavam prestes a fazê-lo. A caminhada em frente da liberdade inglesa ao longo da história supunha, assim, um regresso constante à “antiga constituição” em que as liberdades tinham sido declaradas de uma vez por todas. Esta inclinação retórica e cultural foi sem dúvida responsável pela relativa moderação com que foram em Inglaterra levadas a cabo (quase) todas as investidas pela liberdade e as respostas ao abuso do poder real.

A Europa demorou muitos séculos a ver na Magna Carta um momento fundamental na longa história da tentativa de limitar o poder dos reis e de proteger juridicamente a esfera pessoal. Mas não a Inglaterra, onde a Magna Carta teve efeitos imediatos, e acabaria, vários séculos depois, às mãos de homens como Edward Coke e John Selden, por se converter num pilar central de uma cultura política que chegou a liderar o mundo.

Que a Magna Carta seria com pontualíssima frequência pisada e ignorada pelo poder político inglês, não resta a mínima duvida. Nem sequer vale a pena recordar que a constituição da igreja Anglicana no século XVI é uma flagrante violação do espírito e da letra da Carta e das suas múltiplas confirmações. Mas mesmo nos períodos mais amnésicos da história inglesa, a Carta nunca morreu. Foi sobrevivendo como uma vela acesa junto a janelas ventosas. Já nos períodos mais intensos de recuperação desta tradição, a Carta alimentou guerras civis, revoluções e finalmente a estabilização de um regime estável e poderoso – o regime saído da revolução de 1688, e que criou no século XIX o maior império do mundo. Com essa estabilidade e prosperidade – a que não seriam alheias os princípios da tradição que as sustentava –, a Inglaterra seria a inveja dos restantes países europeus, arrastados para uma perpétua montanha russa política, feita de reveses atrás de reveses para a causa do governo representativo e das liberdades. Até à chegada do século XX, na consciência inglesa e americana a Carta seria a peça demonstrativa de que sempre houvera um caminho diferente para a modernidade política daquele que fora escolhido pela revolução francesa – um caminho que, afinal de contas, se condenou a si mesmo ao fracasso.

Hoje, essa consciência é muito menos nítida. Talvez porque os problemas políticos e sociais se tornaram muito menos nítidos. Talvez porque a Carta e a tradição que fundou sejam vistas através de um vidro intelectual e cultural menos límpido. O aniversário que se irá comemorar em 2015 não constituirá um ponto de viragem para os próximos 800 anos da Carta. Mas poderá ajudar a clarificar as lições que os primeiros 800 trouxeram. Aos ingleses e aos outros.

Professor do Instituto dos Estudos Políticos da Universidade Católica

(texto editado originalmente a 2 de Janeiro de 2015)