Como tem sido por demais escrito e sinalizado, a pandemia veio induzir uma pressão bastante significativa ao modelo e capacidade assistencial da rede de saúde e, em particular, do SNS. Rastreios oncológicos, gestão da doença crónica, cirurgias, consultas de especialidade, exames, muito ficou e continua por fazer. Ainda que os números reflitam já uma tendência de recuperação em algumas destas áreas, está por quantificar o impacto concreto que o adiamento desta atividade terá efetivamente na saúde global dos portugueses.
A verdade é que, para lá do confronto político quanto à capacidade do Governo para gerir a resposta à pandemia, a conjuntura em que vivemos veio expor limitações e problemas estruturais crónicos do nosso sistema de saúde, contribuindo para aflorar em praça pública a discussão daquilo para o qual ele foi essencial e verdadeiramente vocacionado para fazer: assegurar o direito de acesso efetivo e atempado a respostas preventivas, mitigadoras e curativas de doença a todos os cidadãos.
Neste contexto, ainda mais polarizado por força da crise política à esquerda e das eleições que aí vêm, é sem surpresas que a Saúde assume um papel de particular destaque quer nos programas eleitorais quer nos debates que todos temos acompanhado nos últimos dias. Estariam em cima da mesa fatores suficientes para que a atual conjuntura fosse bastante decisiva para se elevar a discussão urgente em torno daquilo que é efetivamente preciso reorganizar, modernizar e reforçar quanto ao modelo operacional que a nossa democracia acolheu para responder a esse direito fundamental, plasmado no conhecido artigo 64º da CRP. Serve isto para sublinhar, porque por vezes parece ficar diluído na espuma desse confronto político, que o SNS não é um fim em si; o SNS será sempre um meio para assegurar aos portugueses um desígnio constitucional que, acredito, todos defendemos.
Como tem sido exaustivamente sublinhado, na prática há várias formas para o Estado tentar garantir esse direito: seja por via de modelos como o nosso, o espanhol, o britânico ou o norueguês, baseados na cobrança de impostos, ou por via de modelos como o holandês ou o alemão, baseados em seguros. Cada um tem as suas vantagens e está naturalmente dependente do próprio modelo socioeconómico da sua comunidade mas, até ver, nenhum deles está isento de problemas. Contrariamente à retórica que o discurso mais à esquerda tenta impor ao país, não é só um modelo como o do SNS que permite cumprir a garantia de acesso universal a cuidados.
Aliás, sabendo que hoje em dia 4 milhões de portugueses já consentem pagar um seguro adicional para aceder a alternativas de cobertura de saúde, dificilmente podemos olhar para o nosso sistema de saúde sem lhe reconhecer esta tipologia mista, ainda que não promovida pelo Estado. Não deixa de ser também irónico que, nos últimos dias, o Partido Socialista tenha procurado atormentar os cidadãos com a falaciosa ideia de que o PSD propõe que a classe média passe a pagar para aceder ao SNS, quando já hoje Portugal é o quarto país da UE em que o cidadão mais tem que pagar do bolso as suas despesas de saúde (30%, apenas abaixo da Grécia, Letónia e Lituânia) e o segundo país europeu em que essa despesa representa uma maior fatia dos consumos domésticos (4,7%, apenas abaixo da Suíça).
O trunfo desta discussão não me parece, portanto, que esteja na mera preferência dicotómica entre a natureza do sistema e na travessia intelectual, porventura inglória, de querer identificar um modelo de resposta que seja intrinsecamente melhor, ou mesmo “o” melhor. Porque o que acontece na prática é que, entre países, sistemas de saúde baseados no mesmo modelo de base acabam por adotar pressupostos e estratégias bastante diferentes de organização, cada um deles certamente convicto de que a sua abordagem será geradora de melhores resultados em saúde.
Dou um exemplo comparativo muito concreto, entre Portugal e a Noruega, a propósito de um dos grandes debates das últimas semanas: o acesso aos cuidados de saúde primários.
Ambos os países assentam numa resposta de saúde fundamentalmente suportada com dinheiro de impostos (a Noruega é, aliás, o país europeu com maior cobertura de despesa pública no total da despesa em saúde, com 86% vs 61% em Portugal). E sim, bem sei que falamos de países com quadros de disponibilidade financeira muito diferentes, mas perceberão que o ângulo central não é esse. A rede de cuidados primários é, em ambos os países, assumida como o ponto de proximidade e a porta de entrada do cidadão no sistema de saúde, cabendo-lhe igualmente cumprir um papel central no domínio da prevenção e da Saúde Pública. As diferenças práticas? Na Noruega, há praticamente quarenta anos que a responsabilidade de gestão integral dos cuidados primários recai sobre os municípios (existem ARS, mas essencialmente responsáveis pela componente hospitalar), cabendo-lhes gerir a oferta de resposta e contratar diretamente os médicos de família, que podem ser integrados como funcionários públicos ou contratados enquanto prestadores privados individuais ou em grupo, assumindo perante o Estado a responsabilidade de dar resposta a uma lista de utentes, tendo estes últimos a liberdade de escolher e mudar anualmente de médico. Embora persistam alguns desafios em garantir uma cobertura plena em determinadas regiões mais rurais, o certo é que esta abordagem historicamente mais descentralizadora, que é comum nos países nórdicos, confere aos municípios uma benéfica flexibilidade, autonomia e, consequentemente, responsabilidade para garantir uma resposta efetiva neste domínio fundamental para a boa gestão dos indicadores de saúde da população. Em Portugal, esta transferência de competências para as autarquias só recentemente foi colocada em cima da mesa e, mesmo quando consumada neste ano de 2022, dirá apenas respeito à gestão de infraestruturas e de recursos humanos não-médicos, o que quer dizer que o planeamento estratégico da oferta de cuidados se manterá centralizado no Ministério da Saúde.
Ora, por outro lado, o nosso país antecipou-se a tirar partido de uma abordagem multidisciplinar nos cuidados primários com a criação do modelo USF, embora ao dia de hoje ele não seja ainda garantido com universalidade para todos os cidadãos nem cumpra o seu potencial máximo de incentivo à atividade profissional das equipas por via do modelo B. Na Noruega, a implementação deste modelo só em 2018 iniciou uma experiência piloto, embora com uma filosofia diferenciadora interessante: pressupõe a criação de duas tipologias de unidade, uma bastante semelhante à USF (com médicos, enfermeiros e secretariado clínico) e outra designada especificamente para gestão de utentes mais complexos (como em Portugal já existe, por iniciativa local, em algumas Unidades Locais de Saúde).
Este exemplo (e muitos mais haverá), porventura demasiado tecnicista, serve apenas o simples propósito de mostrar que querer sistematicamente afundar a discussão política num maniqueísmo ideológico de ver quem gosta mais ou menos de um modelo como o do SNS e quem prefere, tolera ou recusa liminarmente que a garantia do acesso universal à saúde resulte de sinergias entre a capacidade pública, privada e social instalada de pouco ou nada serve quem diariamente precisa efetivamente destes cuidados e, não menos importante, quem diariamente lhos presta com cada vez maior sacrifício profissional e pessoal. O que interessa são os resultados que conseguimos obter com a arquitetura que promovemos para o sistema de saúde. Neste caso concreto, a Noruega garante que 99% população norueguesa tem médico de família atribuído.
Regressando a um patamar mais global da análise, a Saúde tem hoje, aqui e no resto da Europa, desafios estruturais que vão exigir transformações muito significativas nestes modelos de funcionamento. Nesta linha de transformações entram, entre outros, a digitalização, a integração, a contratualização, a formação, a domiciliarização, a gestão de informação e a prevenção, tudo isto orientado para um denominador comum: melhores resultados em saúde. Vão exigir recursos, certamente, mas acima de tudo: muita capacidade de inovação, visão, liderança e coragem. Porque, infelizmente, as coisas não se resolvem com “o dinheiro que tiver de ser”, como Catarina Martins apregoa de maneira ligeira e inconsequente. À falta dessa utópica circunstância, o acesso universal, efetivo e atempado à saúde melhora-se, no imediato, olhando para dentro e otimizando modelos de gestão e de governança. E saber, à partida, que praticamente 20% dos recursos alocados a este setor chegam a ser desperdiçados por ineficiência organizacional apenas reforça este argumento e esta necessidade.
Os profissionais de saúde, os contribuintes – e acima de tudo, os doentes – merecem o rasgo e o reformismo de sabermos continuamente identificar melhores formas de organizar, financiar e modernizar a resposta global às necessidades de saúde em Portugal.
Porque o que interessa a cada um dos portugueses não é a sigla, as cores ou a paternidade do SNS – o que interessa é evitar que qualquer criança, adulto ou idoso, esteja em Bragança, Viseu, Lisboa, Setúbal, Portalegre ou em Faro, tenha que esperar 300, 500, 1000 dias para um consulta ou para uma cirurgia ou fique privado de qualquer outra resposta que lhe é devida. O que interessa não é dizer que se contrataram 28 mil profissionais, se o interior continua a não conseguir fixar médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas ou fisioterapeutas e se hoje mais de uma milhão de pessoas não tem médico de família. O que interessa é instituir melhor política de gestão de pessoas, área na qual estamos com mais de 20 anos de atraso e que não depende meramente de verbas para contratação. O que interessa é sermos melhores a avaliar o que fazemos: sem isso, não conseguiremos ir progressivamente alocando melhor os limitados recursos que temos para que, com a mesma capacidade instalada, consigamos responder a mais necessidades.
Por fim, mas certamente não menos importante, interessa prevenir. É natural que o momento político atual nos afunile o ímpeto e a crítica para a resposta que damos à doença, mas é bom que não esqueçamos que uma parte significativa dessa doença que entra pelo sistema adentro foi, algures no tempo, evitável. E Portugal tem razões bastante significativas para não se desleixar neste domínio, quando olhamos para a UE: somos o 3º país mais envelhecido; o 2º em que mais pessoas consideram ter um estado de saúde mau ou muito mau; o 2º que mais consome antidepressivos; o país em que menos se pratica atividade física e aquele que regista maiores taxas de excesso de peso ou obesidade (o 2º em jovens abaixo dos 15 anos).
Há pela frente um exigente caderno de encargos que, se não resolvidos ou atenuados, significam para as gerações de hoje e de amanhã um progressivo risco de erosão na capacidade que coletivamente atribuímos ao SNS para assumir uma missão de fundamental equilíbrio social.
O acesso à saúde, em qualquer uma das suas dimensões, é e será sempre um direito, nunca uma ideologia. Dá muito mais trabalho encará-lo assim, mas é isso que os portugueses esperam e merecem de quem nos governa. Confio que assim será, a partir de 30 de janeiro.