Multiplicam-se os vídeos e as campanhas sobre o uso excessivo dos telemóveis e das redes sociais, fazem-se caricaturas cómicas e sketches divertidos, publicam-se avisos sérios e advertências máximas, elevam-se as multas e legislam-se pontos agravantes nas cartas de condução, mas nada parece funcionar. Somos capazes de ler estas mesmas anedotas enquanto guiamos e somos capazes de responder a longos feeds de whatsapps quando estamos sentados à mesa, em família, ou quando estamos com o nosso círculo de amigos.

José Tolentino Mendonça, poeta, sacerdote, professor e cronista acaba de lançar um novo livro de pequenos grandes textos, todos eles para ler e reler demoradamente, e um deles tem como título precisamente este que agora também fiz meu. Num dos seus escritos fala deste uso e abuso e refere a “síndrome da hiperconectividade” para marcar o seu ponto e sublinhar o direito de nos desconectarmos.

“À força de estarmos conectados, numa disponibilidade indistinta e sem horário, acabamos por nos desconectar das pessoas a quem mais queremos. O resultado é este: ficamos mais próximos dos desconhecidos e mais desconhecidos dos que nos são próximos”.

Passamos a vida ligados e raramente nos conseguimos desligar. Temos muitas razões para isso e muitas delas extraordinariamente válidas, mas também sabemos que facilmente exageramos. Acontece a todos, aliás. Penso que ninguém está imune nem é alheio a realidades tão frequentes como estar na presença real de pessoas reais e, mal toca o telemóvel, automaticamente dar a prioridade a quem ligou. Ou seja, por mais amigos que sejamos das pessoas reais, que temos connosco e com quem podemos estar a conversar, se o telemóvel toca nem hesitamos em deixá-los pendurados enquanto atendemos a chamada.

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Claro que há prioridades imperativas e claro que o telemóvel também é um instrumento de trabalho que nos mantém ligados e nos exige uma disponibilidade imediata. Graças à net, aos telemóveis, tablets, computadores e afins podemos trabalhar de casa ou a distâncias outrora impensáveis, mas nem tudo é trabalho, e nem todas as chamadas são urgentes. No entanto acontece com demasiada frequência deixarmos os presentes suspensos a meio de uma conversa para atendermos os que nos ligam e, esses sim, poderiam esperar.

Choca-nos sempre sermos trocados por outros que chegaram depois de nós, e se nos indigna tanto que nos façam isso numa simples fila de espera, porque é que não somos sensíveis ao ponto de nos abstermos de fazer o mesmo na cara daqueles com quem estávamos a falar antes de o telemóvel tocar? É um mistério, mas na verdade todos o fazemos.

“Mensagem chama mensagem, e com uma urgência que se sobrepõe a tudo”, escreve Tolentino. Interpela-nos a certeza de que hoje em dia facilmente trocamos as prioridades e confundimos as urgências. “Gasta-se um tempo precioso a responder, replicar, retorquir tontices por monossílabos, alimentando a ilusão de que diante de um ecrã nunca se está sozinho. Mas aí estamos solitários mais vezes do que supomos”.

Sem moralismos nem pregações, Tolentino Mendonça põe o dedo numa ferida aberta que corre o risco de não cicatrizar. Há cada vez mais pais a entreterem os filhos pequenos com ipads e écrans do que com a sua presença real, as suas conversas, as suas brincadeiras e jogos. É fácil ver em restaurantes pais e filhos muito calados à mesa, cada um absorvido com o seu programa, no seu ipad.

Há muito pouco tempo vi uma destas cenas: mãe, pai e filho com cerca de dois anos, os três sentados à mesa de um restaurante da moda, todos a almoçar em silêncio. O bebé passava as páginas do ipad com o indicador como se tivesse nascido para lidar com écrans tácteis; os pais liam cada um as suas coisas. Posso garantir que durante todo o almoço nenhum trocou uma única palavra e o bebé portou-se lindamente. No fim pediram a conta, desligaram os ipads e foram embora.

Ninguém tem (nem pode ter) nada contra o uso de gadgets e, muito menos, da net, mas textos como o de Tolentino têm que nos interpelar. O que escreve bate certo e obriga-nos a repensar pois é verdade que a nossa primeira atitude devia ser afirmar o direito a desconectarmos-nos. Nem sempre, nem nunca, como se costuma dizer, mas tomando consciência dos excessos. A começar pelos que usam e abusam das mensagens e chamadas enquanto guiam sem kit mãos livres.

Ninguém muda por decreto e nem sequer por pagar multas pesadas, pois quase todos reincidimos no erro de atender chamadas e consultar a net ao volante. Só os que já passaram por acidentes graves ou situações dramáticas é que se abstêm de o fazer. Tenho absoluta consciência de que eu própria só não o faço por ter passado pela terrível situação de ver um filho em risco de vida por ter sido atropelado por alguém que ia a trocar msgs enquanto guiava. E se não ia a escrever, ia mais atento ao telemóvel do que à estrada e à condução, de acordo com a versão das testemunhas do acidente. Felizmente no seu caso a embolia pulmonar decorrente da fractura grave (e consequente cirurgia) foi reversível, mas podia não ter sido.

Associações como a Novamente e a Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, entre outras, foram criadas a partir de acidentes que fizeram vítimas mortais e deixaram muitas pessoas altamente condicionadas, cheias de sequelas para a vida. Nem todos os acidentes foram provocados por pessoas distraídas com os telemóveis, como é evidente, mas há cada vez mais situações destas. Os mortos na estrada, os choques em cadeia e os desastres na cidade decorrem cada vez mais de distracções com chamadas, msgs e apps, mesmo que sejam aplicações de GPS ou para consultar o trânsito e ver como evitar engarrafamentos.

Voltando a Tolentino e ao seu novo livro “O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas”, cheio a transbordar de escritos que elevam o nosso olhar acima das circunstâncias e que toca o concreto das nossas vidas de uma forma transformadora, penso que o sentido da sua escrita, nesta crónica particular, nem sequer era o de evitar vítimas na estrada. Tolentino sabe que as primeiras vítimas somos nós próprios, sempre que morremos na praia de uma conversa que ficou a meio, ou ficou mesmo por ter, só porque o telemóvel tocou na altura errada. Tolentino sabe que matamos em nós e nos outros a esperança todas as vezes que nos alheamos do essencial para nos desperdiçarmos em trocas de mensagens fúteis, torrenciais e compulsivas. Penso que o luto que Tolentino pretende evitar quando escreve o que escreve, é este da solidão mais solitária de todas que acontece quando nos desligamos da presença dos que estão à nossa volta e quando deixamos de existir para os que amamos só porque o telemóvel toca ou há net e ficamos presos na rede.