O que é que os europeus querem quando querem outra coisa e votam em partidos radicais? A pergunta pode parecer estranha, até abusiva, mas tem uma razão de ser: nunca, em lugar algum, se viveu tão bem como se vive hoje na Europa. A qualidade de vida média dos europeus é superior, não apenas à da generalidade dos seus contemporâneos como a de todos quantos já existiram. Dos 108,2 mil milhões de pessoas que viveram até hoje, os 500 milhões de europeus da União Europeia, excluídos os mais pobres e alguns milhões de outros países, vivem melhor do que vivem ou viveram cerca de 107 mil milhões de pessoas.

Isto é, caro leitor, português, europeu: faz parte dos mil milhões de pessoas, mais coisa menos coisa, que melhor qualidade de vida tiveram até hoje; em 52 mil anos, menos de 1% do total.

Claro que a Europa não é um Mundo perfeito: 23,7% dos europeus vivem em risco de pobreza e exclusão social, dados do Eurostat para 2015 – mais de 122 milhões de pessoas. Em Portugal, a percentagem sobe para quase 27%. Num continente rico, é inaceitável. Mas a Europa é, ainda assim, a mais igualitária zona económica do planeta. Globalmente, a desigualdade tem aumentado sem cessar nos últimos anos, embora a ritmos e com uma incidência diferente.

Em 1980, os 10% mais ricos na Europa e nos EUA detinham sensivelmente a mesma percentagem da riqueza respectiva, cerca de 33%. Actualmente, nos EUA aproxima-se dos 50%, permanecendo abaixo dos 40% na Europa. A desigualdade aumentou em todo o lado mais do que no velho continente, com os 10% mais ricos a passar de uma percentagem da riqueza nacional dos 31% para mais de 55% na Índia, de menos de 30% para mais de 40% na China e de pouco mais de 20% para mais de 45% na Rússia.

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No Mundo, os ricos são cada vez mais ricos e detêm percentagens crescentes da riqueza. Noutro indicador, os 1% mais ricos tinham em 1980 sensivelmente a mesma quota nos EUA e na Europa, 10% da riqueza; em 2016 esse número aumentou para mais de 20% nos EUA, 12% na Europa. Esta manteve-se relativamente mais igualitária, e nada na actual política norte-americana faz crer na inversão da tendência – pelo contrário. Entendamo-nos, o problema não é que 1% dos norte-americanos mais ricos detenham em 2018 mais de 20% da riqueza produzida no país, o problema é que os 50% com rendimentos mais baixos, que possuíam em 1980 mais de 20% da riqueza têm agora menos de 13% (na Europa, cerca de 22%).

A verdade, e os números não mentem, é que a tão criticada União Europeia continua a ser um (relativo) oásis em termos de justiça social. Um artigo recente do Guardian resume a questão: “parte da esquerda refere a UE como um veículo para políticas económicas neoliberais, parte da direita acusa-a de ser um monstro administrativo ineficiente”. Num Mundo em que a globalização e a digitalização são acusadas de criar desigualdade, lê-se, as políticas dos dois grandes blocos económicos provam que ela não é uma fatalidade e pode ser contida. Foi-o na Europa e só na Europa. Ao rejeitar a filosofia de Reagan e Thatcher de libertação da economia de qualquer controlo, mantendo a regulação como fiel da balança do comportamento dos mercados e seus operadores; ao assegurar a liberdade de circulação dos factores da economia transformando 28 mercados num único mercado interno; ao proteger os sistemas de segurança social como a sua própria razão de ser; ao usar os fundos estruturais para garantir níveis razoáveis (ainda que insuficientes) de convergência das zonas pobres e ricas da União; ao assegurar uma educação de qualidade e tanto quanto possível livre e gratuita, a UE evitou que a sua “economia de mercado” se transformasse numa “sociedade de mercado”. E impediu que a desigualdade, como um cancro, minasse o essencial do seu “fabrico social”.

A Europa manteve um equilíbrio na distribuição dos rendimentos único no Mundo, como mostram os estudos do World Inequality Lab. A tão criticada União da burocracia é, afinal, um sucesso global. Longe de ser perfeita, terá de melhorar em múltiplos aspectos, da governação económica à política, da zona monetária à geoestratégia. Mas ainda é o melhor local do planeta para viver, se não se fizer parte dos 1% mais prósperos das regiões ditas prósperas do Mundo, claro.

Então, volto a perguntar, o leva a opções mais ou menos radicais cada vez mais europeus? Porque escolheram os britânicos sair da União justamente quando a sua economia estava de novo em alta e a crise começava a ser conjugada no passado? Porque cresce o AfD na Alemanha, a FN em França, os partidos de extrema direita na Polónia ou na Áustria? Porque prosperam a Aurora Dourada e o Partido dos Finlandeses e o Partido (holandês) da Liberdade e o da Áustria e a Liga Norte? Mais simplesmente, porque continuam a existir?

São muitas as razões que poderia invocar, do quase desaparecimento da esquerda democrática – como explicou neste jornal Diana Soller –, às ameaças a que a integração europeia não soube responder, como a crise económica de 2008 ou a dos refugiados, que permitiram aos políticos nacionalistas (e uma vez mais era bom que não se confundisse nacionalismo com patriotismo, não são de facto a mesma coisa) explorar o medo do desconhecido, isto é, do supranacionalismo europeu, perigosa ameaça à coesão e identidade nacionais, consideradas como garantia suprema e bastião derradeiro contra a besta negra da globalização: um disparate, bem o demonstra a História europeia, mas isso não o dizem os eurocépticos e os nacionalistas radicais. Podia dar todas essas explicações e decerto a elas voltarei (uma vez mais), mas hoje, se mo permitem os leitores, fico-me por uma explicação simples, quase simplista, muitas vezes repetida, mas nem por isso menos verdadeira:

Enquanto os políticos nacionais não assumirem as consequências necessárias da construção europeia; enquanto não entenderem que sem recursos não é possível à Europa dar resposta aos desafios que se lhe colocam; enquanto não deixarem de chamar seus os sucessos, responsabilizando a integração europeia por aquilo que corre mal, as aves de mau agouro de todos os bordos continuarão a ter na opinião pública terreno fértil para as suas mensagens xenófobas e nacionalistas.

Não sei se os números que demonstram a fortuna de viver numa Europa mais justa do que o resto das sociedades desenvolvidas ou em desenvolvimento, reverterão essa tendência suicida dos líderes europeus. Mas vale a pena tentar, mesmo que a pregação seja no deserto.

Mesmo que quem deva ouvir, ouvindo, faça orelhas moucas ao que chamará palavras loucas.

A travessia no deserto da esquerda europeia