Estamos numa daquelas situações em que é inútil discutir sobre o que se deve ou não dizer e fazer meia dúzia de dias antes das eleições. Provavelmente, o actual governo não estava à espera que o Ministério Público (MP) o brindasse com um despacho de 500 páginas sobre o caso meio esquecido do roubo de armas de Tancos no qual o PS já ficara muito mal, como é frequente suceder-lhe em matéria de ética política.

Há poucos dias foi a PGR quem veio declarar, por solicitação do primeiro-ministro, e em uníssono com os membros do seu conselho, conforme um leitor não identificado me informou, que a legislação em vigor sobre o comportamento exigido aos membros do governo perante os contratos do Estado «não devia ser interpretada de forma literal», como aliás o ministro dos Negócios Estrangeiros já declarara… Segundo o Conselho da PGR, a lei devia ser à «vontade do freguês»!

Como que em resposta a mais esta manobra jurídica na qual a nossa justiça é useira e vezeira, mais de dois anos após o roubo das armas de Tancos, três magistrados do MP acusaram duas dezenas e meia de militares e ladrões encabeçados pelo antigo ministro da Defesa de então, o qual fora entretanto despedido pelo chefe do governo, argumentando ambos nada saberem do assunto. Será necessário verificar por que razão António Costa exonerou de facto o seu ministro Azeredo Lopes, que nada qualificava aliás para ser ministro, como se viu pela forma desastrosa e, aparentemente, ilegal se não criminosa, como lidou com o caso de Tancos.

Lesto pela primeira vez, o novo líder do PSD, Rui Rio, cuja campanha tinha sido até aqui de uma discrição excessiva, interpelou finalmente António Costa acerca das suas responsabilidades políticas perante o roubo e as manobras empreendidas, segundo a acusação do MP, pelo antigo ministro do PS a fim de minimizar os estragos provocados pelo crime na pretensa fachada de isenção e competência governamentais.

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Entretanto, o ministro ia conspirando com a Polícia Judiciária Militar e com o próprio ajudante-de-campo do Presidente da República no sentido de obter a devolução das armadas roubadas mediante aquilo que no Brasil se chama «delação premiada», oferecendo o perdão aos ladrões ou a alguns deles em troca das confissões: uma medida, como sabemos, que a legislação portuguesa não contempla e eu me perguntava no meu último artigo quando iria o governo adoptá-la: afinal este já tinha achado excelente premiar alguns dos delinquentes!

Para coroar as revelações dos malfeitores acerca do que se passaria no segredo dos corredores do poder entre o Ministério da Defesa, o primeiro-ministro e o Presidente da República, lá no meio das 500 páginas do despacho do MP há uma referência a um tal «papagaio-mor» que estaria igualmente a par do que se tramava – o que não me parece inadmissível, antes pelo contrário – mas provavelmente ficaremos sem saber quem é o dito «papagaio»… Em todo o caso, ladrões, polícias amigos dos ladrões, altas patentes da Forças Armadas, um ministro e um ajudante de campo da PR terão, segundo o MP, montado uma invencionice colada com cuspo a fim de os participantes na tragicomédia ficarem fora da cadeia.

Contudo os investigadores do MP não deixaram que isso acontecesse e, desviando-se possivelmente de instruções que lhes tenham dado, acabaram por contribuir nos últimos dias da campanha eleitoral para mostrar a forma como o Governo lidou com situações que embaraçam altamente o actual poder, assim como para remover o manto de mentiras e silêncios com que os responsáveis políticos tentaram encobrir os factos. É muito improvável que estas notícias de última hora, que o Governo conseguira abafar até aqui, não tenham reflexo na votação de domingo a oito dias.

Pessoa cuja seriedade ninguém pôs em dúvida, Rui Rio conseguiu encostar António Costa e os seus eventuais cúmplices à parede, sem ter de os nomear pessoalmente mas mostrando, perante os eleitores, a forma como está a decorrer a investigação de um caso aparentemente desprezível como Tancos mas que ganhou, com o despacho do MP, uma gravidade inesperada que fará perder votos ao PS, ao mesmo tempo que embaraçará a sua futura colaboração com o PCP e o BE, os quais não poderão continuar a fingir que não sabem com quem estão a lidar.

O primeiro-ministro António Costa e o próprio Presidente da República, enquanto chefe das Forças Armadas, poderão manter que nada sabiam do assunto, o que não deixará de surpreender muita gente mesmo dentro dos seus respectivos campos de influência, mas temos de convir que é improvável que o antigo ministro da Defesa e o ajudante-de-campo do PR se tivessem atrevido a sonegar informação deste calibre aos seus superiores, pelo que jamais irão escapar à dúvida.

É crível, por fim, que nunca tenha passado pela cabeça do PR e do PM perguntarem aos seus subordinados o que era ou não verdade nas notícias que circulavam? Este é, decididamente, um daqueles casos em que os mais altos responsáveis da Nação serão culpabilizados pelos eleitores por acreditarem que eles sabiam ou pelo facto de alegarem não saber. A tal «maioria absoluta» que o PS ambicionava parece bastante mais longínqua!