Imaginem que, pela primeira vez na história, um conselho de ministros português reúne pai e filha, e marido e mulher. A imprensa repara, o país nota, e até o mundo civilizado dá por isso. “Endogamia” passa a ser um lugar-comum do comentário político. Não se sabe bem o que está mal, mas algo está mal. Que fazer, quando já não chega fingir que não há problema? Três coisas, que o governo nos ensinou nos últimos dias.

Em primeiro lugar, fazer de conta que foi sempre assim, que não há nada para dizer do facto de um país da UE com 10 milhões de habitantes ser governado por pais e filhos e maridos e mulheres. Para confirmar essa normalidade, nada melhor do que uma velha história de chefes de gabinete e de secretárias do tempo de Cavaco Silva, de há trinta anos: vejam como eles também nomeavam as mulheres. Como se fosse mesmo um precedente, ou como se um precedente dissipasse a questão. De repente, o facto inédito de uma parte dos ministros serem familiares próximos uns dos outros, como nunca acontecera num governo português desde o século XVIII – repito: como nunca acontecera num governo português desde o século XVIII – está esquecido, e em vez deste governo e destes ministros, é Portugal, são todos os partidos, todos os portugueses que estão vagamente em causa. Assim se faz noite e todos os gatos voltam a ser tranquilamente pardos.

Em segundo lugar, esperar que fale alguém a quem a esquerda odeia e uma parte da direita não estima. Nessas condições, há quase só o professor Cavaco Silva. O antigo presidente falou, e a partir daí foi fácil ao governo tirar os seus dependentes e activistas da confusão envergonhada em que jaziam, para os lançar na excitação de mais uma correria anti-cavaquista. Subitamente, parecia que estávamos outra vez em 1994, que ainda buzinavam na ponte e as gravuras não sabiam nadar. Tivemos até direito a esta pequena preciosidade: Marques Mendes, na televisão, a bater no peito, “olhando para trás”, por causa da endogamia nos gabinetes do cavaquismo. Como se esse fosse o problema em 2019. A ministra é filha do ministro? Que interessa isso, se em 1985 a ministra era filha da secretária geral do ministério? Durante uns tempos, a culpa foi de Passos; agora parece que voltou a ser de Cavaco.

Em terceiro lugar, esperar por uma ideia salvadora do presidente da república, como esta: fazer mais uma lei, ou alterar uma lei existente. Para quê? Para impedir parentes de se sentarem ao mesmo tempo à volta da mesa do conselho de ministros, ou apenas para não haver primos nomeados chefes de gabinete? Não se percebe bem. Mas o interesse da ideia é duplo. Primeiro, chama a atenção para que nenhuma lei foi violada, isto é, que a polícia judiciária não está a recolher provas e que os juízes não vão constituir arguidos. Depois, desvia a discussão para o “processo legislativo”. De repente, as questões são: quem vai propor? Quem vai aprovar? E vai ser antes ou depois das eleições? Etc. Entretanto, o pai e a filha, o marido e a mulher continuam ministros, já só para espanto da imprensa espanhola, que, ainda por cima, nem consegue ser exacta nas complexas genealogias da política portuguesa.

E pronto, está feito. Falemos agora dos passes. Ou falemos ainda, se quiserem, de “ética”. Do que não interessa falar é da questão propriamente política, isto é, do que esta história desvenda sobre o tipo de poder que existe em Portugal. De facto, nada tem de surpreendente: a estagnação da economia e a estatização da sociedade tinham de dar nisto, numa política reduzida a um círculo fechado de amigos e de parentes, como nas autocracias do Terceiro Mundo. Mas pedir a um regime e a uma sociedade que encarem de frente a sua própria degradação é talvez pedir demais. Em vez disso, ataquemos Cavaco Silva. É mais conveniente e tem um certo encanto nostálgico.

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