Peço desculpa a quem me costuma ler mas sou forçado a regressar a Marcelo Rebelo de Sousa e à sua tentativa de controlar a direita em Portugal. Faço-o porque se trata de um processo que tenho referido desde que Marcelo foi eleito. Mas faço-o também porque a tentativa de Marcelo moldar o regime à sua imagem e semelhança, além de prejudicial para país pode impedir o surgimento de uma direita liberal. Uma direita que não desconfia da globalização e que não tolera os compadrios que minam a nossa economia e destroem as vidas de muita gente capaz. A presidência de Marcelo representa, pois, dois perigos: um para o país e o outro para a direita.

No seu livro “Francisco Sá Carneiro: Solidão e Poder”, Maria João Avillez conta-nos (na página 120) um episódio interessante sobre Marcelo Rebelo de Sousa. Que em finais de Maio de 1975, quando recuperava da sua operação em Londres, Sá Carneiro veio secretamente a Lisboa  para o Conselho Nacional do PSD. Em casa de Rui Machete, onde terá ficado, Sá Carneiro, ainda cansado deita-se cedo. “E quando já se retirara, ouve um burburinho: é Marcelo Rebelo de Sousa, azougado e lépido que surge pela casa dos Machete, como um furacão. Ouviu dizer que Francisco estava em Portugal, não sabe se é verdade, se é mentira. Lembrou-se de que os Machete talvez… Mas nem os Machete, nem Conceição Monteiro, nem Correia da Cunha sabem de nada, ou viram nada. Marcelo sai de orelha murcha. Horas depois Francisco contará ao grupo que já deitado ouvira tudo, e rira a bom rir com os seus botões… perante a dúvida ansiosa manifestada pelo então jovem jornalista.

Este episódio, além de ter alguma piada, é revelador. Sá Carneiro ou Soares podiam fundar um regime. Marcelo, não. Belíssimo estratega, e munido duma sagacidade rara com que lê a política, Marcelo viu no desgaste que a austeridade provocou à direita, e na incapacidade de o PS se reafirmar plenamente após os dois mandatos de Sócrates, uma oportunidade de ouro para se afirmar, não como árbitro, mas pedra angular do regime. O perigo reside no facto de, se o actual Presidente não tem a visão de Sá Carneiro ou de Soares, também não goza da capacidade de contenção de Cavaco Silva. Este, se legado deixa na forma como exerceu os seus mandatos presidenciais foi o ter deixado incólume o sistema político. O que não terá sido fácil perante o desastre que foi o país ter tido, durante 6 anos, José Sócrates como primeiro-ministro. Deve ter sido mesmo dramático lidar com alguém como Sócrates e sempre com o cuidado de não ultrapassar os limites das funções presidenciais. Por alguma razão, Cavaco Silva sempre que pode refere o cuidado que teve nesta matéria: deixar intacto o sistema político. Não extravazar os seus poderes. O funcionamento de um sistema político não se perserva apenas porque se mantém o que está escrito na Constituição, mas no modo como cada órgão de soberania, exerce os seus poderes. Na forma como cada agente político refreia a sua acção, reprime excessos; se contém e se modera. É interessante que um economista como Cavaco perceba melhor isto que um constitucionalista como Marcelo. Mas talvez seja precisamente por isso.

Porque Marcelo, o ansioso Marcelo que procurava Sá Carneiro, o azougado e lépido Marcelo Rebelo de Sousa tem muita dificuldade em se conter. Traquina e ligeiramente lá levará a água ao seu moinho. Este é o primeiro perigo que Marcelo representa: um perigo para o regime. O outro é o perigo para a própria direita.

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É um perigo porque a pessoalização deste espaço político é a repetição de um infortúnio que levou à direita mais de 40 anos para se libertar. Mais do que isso: entra em choque com o pensamento conservador e liberal que as gerações mais novas têm vindo a desenvolver nos últimos anos.

O lado positivo deste perigo é que com o comportamento de Marcelo, a direita ganha um discurso político a par do discurso económico que já tinha. O desafio por um país livre em que as pessoas possam fazer negócios, abrir empresas, exercer a sua actividade profissional sem terem de lidar com a frustração de ver privilegiados com acesso aos corredores do poder a passarem-lhe à frente. Sem terem de assistir à ruína do esforço de uma vida porque o Estado faliu, e os bancos foram com ele. Um país em que liberdade económica significa leis laborais menos rígidas para que seja mais fácil arranjar e mudar de emprego e que as pessoas dependam menos das empresas para que trabalham. Sejam mais senhoras do seu destino. Um país em que liberdade económica obriga a uma redução da dívida pública, para que dessa forma haja crescimento económico que crie oportunidades e que permita que se baixem os impostos sem que se onere as próximas gerações. Se baixem os impostos sem que tal obrigue a que os mais pobres fiquem sem os serviços públicos que os apoiam. Se baixem impostos sem que tal signifique que os filhos dos mais pobres deixem de poder lutar por uma vida melhor. Se baixem os impostos sem que o acesso de todos à saúde seja posto em causa. Se baixem os impostos porque se deve menos; se baixem os impostos porque se procedeu a uma verdadeira reforma fiscal. Economia, mas também política: porque um país livre pressupõe um regime político não dominado por um homem só, uma figura proeminente que abafa todas as alternativas e nos condena ao socialismo deficitário e bafiento que nos governa. Liberdade política sem uma figura que console o cidadão da sua maleita que é existir. Porque com uma direita domesticada o país está perdido.

Advogado