À memória de Fernando Ávila

O Marcelo — com o artigo definido — é uma personagem de quem toda a elite lisboeta tem uma história para contar. Corresponde, até certo ponto, ao “Professor” que, nos últimos anos, entreteve a nação no domingo à noite. A elite lisboeta, da esquerda à direita, diverte-se muito com o Marcelo, embora aprecie menos o Professor, que tem de partilhar com o povo. Mas não gosta nada do candidato presidencial Marcelo Rebelo de Sousa.

Há várias razões para isso. O candidato Marcelo Rebelo de Sousa optou por fazer campanha como o país se habituou a vê-lo: por conta própria e bem disposto. Dispensou as notabilidades que aproveitam estas ocasiões para aparecer na fotografia, não deu trabalho aos especialistas em dar lições aos candidatos. Marcelo Rebelo de Sousa é mesmo um candidato livre e independente, e é disso que os oligarcas não gostam. Já era o problema que tinham com Cavaco Silva. A Cavaco Silva, achavam-no demasiado sisudo e rígido; a Marcelo Rebelo de Sousa, acham-no demasiado versátil e jovial. A matéria da acusação é indiferente, porque a questão é a mesma: ele não precisa deles, e eles não lhe perdoam.

A esquerda gostaria que Marcelo Rebelo de Sousa fosse o candidato da direita; a direita, às vezes, também. Isto é por vezes invocado, de um lado e do outro, para provar a inconstância do candidato. Mas todos os presidentes viveram em tensão com a sua família política. Soares nunca deixou de chocar com o chamado “ex-secretariado”, irritando sucessivos líderes socialistas. Sampaio não esperou por Guterres para se candidatar em 1995, e em 2004 provocou a demissão de um secretário-geral do PS. Cavaco Silva afastou-se de Santana Lopes em 2005, e em 2009 foi acusado de não ajudar o PSD (embora Sócrates o acusasse do contrário). Não é um problema deste ou daquele candidato, mas de um sistema que dissociou a presidência da república e os partidos.

Outros não gostam do candidato Marcelo Rebelo de Sousa porque já sabem, por antecipação, que ele vai fazer isto e deixar de fazer aquilo. Por si, o candidato não pretende ir além do “árbitro” e “moderador” da tradição. Acontece que a história dos últimos quarenta anos já nos deveria ter ensinado que não é possível adivinhar o que um presidente vai ser a partir da sua campanha, nem sequer da sua suposta personalidade. Em 1986, Soares foi eleito pela primeira maioria de esquerda efectiva, para logo em 1987 impedir essa maioria de governar. Em 1995, Sampaio propunha-se ser o presidente mais parlamentar de sempre, e ei-lo, em 2004, a dissolver um parlamento com uma maioria absoluta. Em 2006, os inimigos de Cavaco Silva previam um presidente tentado a governar, para depois passarem dez anos a acusá-lo de que não governava.

Vivemos numa época de incerteza evidente. Temos o governo mais fraco dos últimos quarenta anos. O pior presidente, neste sistema político e nas actuais circunstâncias, seria um presidente dependente de um só sector ideológico,  vinculado a um único “tempo”, que uma súbita mudança de situação política poderia deixar em Belém como o náufrago inútil de uma solução ultrapassada. Ao regime convém um presidente com força própria, que lhe permita nomeadamente ser flexível. Marcelo Rebelo de Sousa tem essa força. Tem a força de um dos mais longos percursos públicos da democracia. Tem a força de quem avançou sem precisar de avales de panteão. Tem a força de quem aceitou o apoio de partidos, mas não o pediu. Tem a força de quem fala para todos, sem clubismos ideológicos. Não é apenas o melhor dos candidatos que se apresentaram. É o melhor de todos os candidatos que se poderiam ter apresentado, desde logo porque teve a coragem de se apresentar. Desculpem, mas nunca houve eleições em que a escolha fosse mais óbvia. Se mesmo assim há um problema, não é Marcelo Rebelo de Sousa.

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