1. A Constituição da República Portuguesa — que todos temos de suportar há mais de 40 anos — é tão detalhada, tão detalhada, mas tão detalhada que só falta decidir qual a cor das meias que os dirigentes políticos devem usar quando vão trabalhar. Mas, pelos vistos, essa quantidade insana de ordens, proibições e sugestões não é suficiente para algumas lideranças que, tal como Deus, pretendem ser omnipresentes, omniscientes e omnipotentes.

A nossa adorada Constituição gasta, por exemplo, 27 longas alíneas a descrever os poderes e competências dos Presidentes da República — só que, a avaliar pela actuação de Marcelo Rebelo de Sousa, há pelo menos uma que falta. Devia estar algures escrito o seguinte: “Compete ao Presidente da República, na prática de actos próprios, ingerir-se na vida interna dos partidos do seu espaço político e impedir o aparecimento de novos movimentos que ameacem o status quo”.

Segundo o último Expresso, que não tem redação em Belém mas parece, o que por estes dias “preocupa” o Presidente é o seguinte pensamento, provocado pelo hipotético nascimento de um partido criado por Pedro Santana Lopes: “Se dividem mais a oposição de direita ao Governo, então é que nunca mais chegam lá”. Assombrado com esta possibilidade, quando ouviu falar dos planos divisionistas de Santana, Marcelo disse-lhe (e passo a citar): “Espere!” E, de acordo com a mesma notícia, as coisas não ficam por aqui: os dois voltarão ainda a falar antes das férias.

É um velho problema da democracia portuguesa: alguns dos nossos Presidentes da República julgam-se ungidos da missão de fazer, desfazer ou refazer os partidos que existem e os partidos que gostariam que existissem. Ramalho Eanes, como se sabe, teve desde cedo a irresistível tentação de criar o seu próprio partido, a que chamaria PRD. Para isso, fez um duplo movimento. À esquerda, tentou fragilizar o PS de Soares — a ingerência foi de tal forma insuportável que, na campanha para a reeleição de Eanes, o líder socialista chegou a autosuspender-se do cargo. À direita, o então Presidente tentou por todos os meios dividir o PSD de Sá Carneiro, usando conspirações e traições — levando o líder social-democrata a demitir-se num momento de especial tensão e provocando cisões violentas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando se sentou em Belém, Mário Soares seguiu este elevado exemplo. Passou todos os anos em que foi Presidente a telecomandar o Partido Socialista. Vítor Constâncio, Jorge Sampaio e António Guterres tiveram que suportar a chacota, a oposição e a pressão de Belém, que sempre tentou subordiná-los aos seus urgentes planos anticavaquistas.

Agora, chegou a vez de Marcelo. Nas eleições internas do PSD, o Presidente recebeu Santana em Belém, tornando assim clara a sua preferência sobre o líder que o partido iria eleger. E tem aparecido em vários lados junto de Assunção Cristas, mostrando dessa forma o seu apoio ao outro partido da direita. O grande objectivo de Marcelo é ter PSD e CDS juntinhos, arrumadinhos, obedientemente à espera da sua vez de substituir a “geringonça”. Se se sente à vontade para mandar recados como este pelos jornais, imagina-se o que Marcelo fará quando ninguém está a olhar.

Convém notar um ponto: não interessa saber se o Presidente tem razão ou não na análise que faz da direita portuguesa; mas interessa sublinhar que esse é um assunto que não lhe diz respeito. Sempre que os Presidentes  se meteram na vida interna dos partidos, as coisas terminaram mal. Para os partidos, claro, mas para os Presidentes também.

E há ainda um detalhe. Os dias dos Presidentes da República — mesmo os de um hiperactivo como Marcelo — têm apenas 24 horas, como os de todos nós. Ou seja, não dão para tudo. Se, em vez de se comportar como um Feiticeiro de Oz da direita, Marcelo se concentrasse nas muitas competências presidenciais que efectivamente constam da Constituição talvez, por exemplo, o ridículo e misterioso roubo de Tancos já tivesse sido esclarecido pelos militares e pelo Governo. Quando alguém olha muito para a direita, inevitavelmente acaba por não ver o que se passa à sua esquerda.

2. Na política portuguesa, há palavras que queimam. Um exemplo: “direita”. Ninguém quer ser de “direita”, quando muito, em momentos de ousadia e loucura, admite-se ser de “centro-direita”. Outro exemplo: “conservador”. Numa entrevista ao Expresso, Pedro Santana Lopes anunciou querer combater o progressismo social do Bloco de Esquerda e defender “a cultura portuguesa” e “as nossas tradições”, mas apressou-se logo a dizer, como quem esconjura uma maldição: “Não me considero conservador”.

Por falta de espaço, tempo e paciência, não pretendo explicar agora os clássicos, mas talvez seja útil sublinhar que ser conservador não é — decididamente, não é — ser misógino, homofóbico ou reaccionário. E até há países razoavelmente civilizados, como Inglaterra, onde existe um partido que se chama “Conservador”, com militantes que se declaram, com orgulho, “conservadores”.

Em Portugal, porém, até os anti-progressistas têm de jurar em público o seu amor ao progressismo, assegurando, como faz Santana, a sua irreprimível vontade de “reformar esta sociedade”. Já se sabe: por cá, a direita não é bem direita, os conservadores não são bem conservadores e os liberais não são bem liberais. Depois, aqueles que querem liderar este espaço político onde abundam os traumas e a vergonha admiram-se que o PS apareça como o partido natural de governo, tratando todos os que têm o atrevimento de pensar de maneira diferente como criados de quarto que devem limitar-se a levar-lhe o pequeno-almoço, a trocar os lençóis da cama e a passar a ferro o pijama.