Encontradas que estão as soluções para a capitalização do Novo Banco e da Caixa Geral de Depósitos, surgiram as esperadas manifestações de indignação sobre a principal entidade pagante: você, que tem a amabilidade de estar a ler estas palavras e para quem vou ser desagradável nos próximos parágrafos.

Sendo o combate à ignorância e pseudoconhecimento um dos meus temas favoritos e, consequentemente, a regulação bancária um dos meus ódios de estimação; vou fazer o sacrifício supremo: pedir-lhe para assumir que, afinal, a regulação está certa. Isto é, vamos assumir que todos os banqueiros eram uns enviados do demónio que instrumentalizaram os funcionários para emprestar dinheiro a quem não deviam porque já sabiam, no início, quem ia pagar e quem não ia pagar (não disse que ia ser imparcial…). Ora, nestas condições, a quem cabe o pagamento das capitalizações dos bancos em dificuldades ou que alternativas teríamos enquanto cidadãos?

Se calhar vamos entender o que “salvar bancos” significa, começando pelo que não significa. Salvar bancos não significa salvar acionistas, tirando o caso óbvio da CGD em que o acionista é o cidadão (e não o estado como a “ética” vigente gosta de referir). Todos os casos em que o Banco de Portugal forçou uma intervenção, os acionistas perderam tudo ou quase tudo. Os acionistas do BCP viram o valor das suas ações reduzidas a uma percentagem ínfima e para os acionistas de todos os outros – BPP, BPN, BES, BANIF – essa percentagem passou a ser zero. Mesmo os bancos que apenas usaram os fundos disponibilizados pela troika, viram o seu valor truncado. Portanto, se houve alguém salvo, esse alguém não foram os donos dos bancos de certeza absoluta. Nem mesmo aqueles que eram donos do banco e de tudo o resto.

Salvar bancos também não significou salvar gestores. Na verdade, em todos os casos, foram despedidos. Tivessem muita, pouca ou alguma culpa na situação, todos foram corridos e vários estão ainda sujeitos a processos crime que estão a decorrer da forma como decorrem os processos crime em Portugal. E não estou a falar apenas dos gestores de topo, porque muitos dos diretores coordenadores dos bancos tiveram o mesmo destino. Se há coisa que estas pessoas sabem é que não foram salvas por ninguém e o pesadelo ainda está longe de terminar para eles.

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Salvar bancos também não foi particularmente bom para os empregados. Embora protegidos pela rigorosa lei e justiça laboral portuguesa, milhares já perderam o emprego. Mas mais, todos perderam percentagens substanciais do seu rendimento que dependiam diretamente dos resultados do banco e da sua performance individual, prejudicada em muito pela intervenção. Hoje o número de bancários nos bancos intervencionados é uma fração daquela que existia antes de serem intervencionados e os programas de redução de funcionários estão longe de ter terminado. Não, também não foram os funcionários que foram salvos.

Então, meteram-se milhares de milhões de euros nos bancos e ninguém foi beneficiado com isso? Claro que alguém foi beneficiado com isso: você! Sim, você que me está a ler e que tem o dinheiro depositado num qualquer banco, mesmo que não seja “naquele” banco. Repare que, eliminados os de cima, já só sobram dois tipos de intervenientes nos bancos, os credores e os devedores. Os credores são os depositantes, são as suas poupanças da vida, o dinheiro da câmara municipal onde vive que lhe garante a água, da empresa onde trabalha que lhe garante o ordenado, da segurança social que lhe garante a reforma, etc. Quem salvou o banco, salvou-lhe tudo isto e, vai concordar, não é coisa pouca. Os devedores, esses ficariam encantados se o banco desaparecesse no nevoeiro porque passavam a dever dinheiro a ninguém (que, obviamente, não seria possível).

Podemos ter outras alternativas, como deixar falir os bancos. Isto, como deve imaginar, não significa obliterar o banco dos registos. Significa pegar nos devedores e nos credores e passá-los a todos, e respetivos créditos e depósitos, para a carteira de outro banco qualquer. Mas o problema inicial era não existir capital para sustentar este estado de coisas. As regras da regulação são lineares (como a forma de pensar dos reguladores) o que significa que se a carteira não tem capital que a sustente, então só poderia passar para um banco que tivesse esse capital disponível. Como nenhum banco tem esse capital disponível porque usou-o todo no seu próprio negócio, ainda que se possa ser um banco sem problemas, essa passagem de carteira só poderia existir se os acionistas do banco recetor aumentassem o capital. Mas se a carteira valesse isso, porque é que os acionistas do banco original não o fizeram? E caímos na mesma situação, precisamos de salvar os depositantes e para salvar os depositantes, precisamos de meter o nosso dinheiro no capital do banco.

Deixar falir os bancos implicava ter um ambiente regulatório completamente diferente, onde ser banco fosse uma coisa fácil e não uma coisa impossível, onde os reguladores pensassem de forma “económica” e não linear, para que houvesse muitos bancos para absorver carteiras. O único ambiente regulatório onde isto ocorre, nos EUA, é também o único país que recusou as regras que os europeus têm hoje. Vê-se agora quem tinha razão.

A absorção de carteiras, para o proteger a si sem ser necessário ser você a meter sempre o dinheiro, não seria a única coisa importante. Os reguladores incidem a sua preocupação no capital que se expressa em unidades monetárias e que está escrito no balanço do banco. Mas há capital que faz parte do sistema financeiro que os bancos não registam no balanço. Parte, é o saber fazer dos seus funcionários. Nós, com o nosso foco nos euros, esquecemo-nos que os euros podem ser impressos, o saber e a experiência dos funcionários podem perder-se para sempre e isso é tão mau ou pior que a perda das nossas poupanças, que o digam todos aqueles que um dia perderam tudo o que tinham nas mãos de um ignorante qualquer que se dizia especialista. Um banco não nasce do chão de um dia para o outro, porque são necessárias décadas para formar um quadro de pessoal conhecedor da forma como se lida e de como se defende o dinheiro dos outros. Para além da absorção das carteiras, o sistema financeiro deveria ser capaz de absorver os funcionários dos bancos que se deixassem falir, para que esse capital não se perdesse. Mais, como criar um banco não é fácil, é quase impossível, quanto menos bancos houver, mais dependente deles fica a economia circundante, por óbvias dificuldades competitivas. Mas o ambiente regulatório que temos é este e eu disse que assumíamos que é bom. E, neste ambiente, deixar falir um banco tem consequências muito mais graves que financiar a sua sobrevivência.

Então e se tivéssemos outro ambiente regulatório? Aí as coisas seriam muito diferentes, mas temos este por culpa de quem? Não é sua? Quantas vezes quem anda a protestar pelo dinheiro que está a meter nos bancos teve a caridade de procurar saber na net porque carga d’água estava a capitalizar um banco e o que isso significava? Quantas vezes se preocupou, no seu processo de decisão enquanto eleitor, entender a posição daqueles em quem votava sobre o assunto da regulação bancária? Repare que aquilo que já gastou em capitalização do sistema financeiro dava para construir três ou quatro hospitais centrais novinhos em folha ou formar 100 000 novos médicos. Não seria de se preocupar com este assunto da próxima vez que votasse e perguntar ao sujeito que vai colocar no governo que ideias tem sobre o assunto, se é que tem?

Se calhar aquilo que lhe trouxe, não era aquilo que queria ler. É sempre melhor mandar as culpas para o oblívio e dizer que quem foi salvo foi uma qualquer entidade abstrata que representa coisa nenhuma. Mas é isto que tenho para lhe dizer, quem foi salvo foi você e a culpa disto tudo é sua. Por isso, quem é que queria que pagasse?

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer