Então é este o sabor de uma vitória na fase de grupos? Que tal? Já passaram uns anitos desde a última. Para quem não se lembra, recordo que nem essa vitória soube a vitória. Ganhámos ao Gana por 2-1 em Manaus ou em São Sebastião do Rio sem Peixe e viemos para casa a chorar o fadinho. Dois anos depois, no Europeu, acabámos campeões mesmo tendo empatado os três jogos da fase de grupos. Será esta vitória um mau prenúncio? Sigamos não o cherne, mas o Santos, e cultivemos a superstição de não ter superstições. E, ainda na senda de Santos, evitemos por todos os meios o debate sobre a qualidade do nosso futebol. Do pouco que vi do jogo e a confiar nos relatos de familiares e amigos que me chegaram à Sérvia (onde me encontro neste momento num quarto de hotel a beber um Chardonnay dos Balcãs que não é das piores coisas que já bebi, obrigado), praticámos um futebol atroz. Mas ganhámos. Aceito que esta conjugação de factos possa irritar bastante os nossos adversários, mas se há alguém que sabe dar o devido valor a uma derrota após uma grande exibição somos nós, por isso, aguentem que um dia chegará a vossa vez de serem a Alemanha.

No entanto, as exibições tristonhas, ainda que eficazes, não chegam para explicar uma certa apatia coletiva à volta da seleção e que se notava ainda antes do início do campeonato. Será desinteresse ou excesso de confiança? Receio da desilusão ou certeza de que estamos com o pé quente? Talvez devido à situação no Sporting, que tem reconciliado muitos sportinguistas com as modalidades amadoras, a natureza e o bridge, ou por causa da vitória de há dois anos, que parece ter eliminado da atmosfera que envolve o cérebro do adepto comum os vestígios de sub-desenvolvimento, a seleção partiu para a Rússia em relativa tranquilidade. A exceção foram as televisões, com os seus repórteres pendurados em motos a acompanhar o trajeto do autocarro, que vivem e procuram fomentar um perpétuo estado de excitação nitidamente desfasado do sentimento coletivo de um povo que assistiu, sem dramas, à partida de um conjunto de atletas a fim de disputarem um torneio no estrangeiro. Há momentos em que os canais de televisão dançam ao som de uma música que só eles ouvem.

É claro que, dias depois, ver o Presidente da República de cachecol na mão, ao lado do presidente da Câmara de Lisboa e outras personalidades adjuntas, nos fez temer um súbito regresso aos tempos não muito distantes do “como uma força”, dos panos litúrgicos à janela e das procissões populares. Porém, até as pessoas que se juntam para ver os jogos nas praças parecem mais interessadas em criar um efeito de multidão e o consequente impacto televisivo do que com a sorte da equipa das quinas. Quero dizer, importa-lhes que a seleção ganhe na medida em que o festejo gregário, a verdadeira razão de estarem ali, depende disso. No resto, pelo que vejo, há pela seleção um cuidado de parente afastado: agradecemos informações sobre o estado de saúde, mas não nos obriguem a visitá-lo.

Talvez seja esse o maior legado de Fernando Santos, o homem que pôs um país inteiro a apreciar os benefícios de um empate. Mesmo quando perde, e não tem perdido muito, esta seleção cumpre um padrão mínimo de empenho e profissionalismo que desmotiva qualquer adepto, mesmo daqueles mais desaustinados, a saltar para a frente das câmaras aos gritos de “vocês são uma vergonha”, com aquela gama de sentimentos impróprios entre um adulto e um grupo de 23 adultos, mesmo que em representação da pátria.

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Tornou-se mais fácil ver um jogo de futebol da seleção como um jogo de futebol, com tudo o que tem de aleatório e, nessa aleatoriedade, de belo. Livres do peso de nunca termos ganhado nada, agora reconhecemos, por exemplo, a superioridade óbvia dos espanhóis sem ver nisso uma afronta ou a confissão de uma fraqueza intolerável. Eles são melhores e nós fazemos o que podemos e, com alguma sorte e Ronaldo à mistura, talvez as coisas até corram bem. Por tudo isto, esta manhã acordei com esperanças, mesmo sabendo da inexistência de qualquer diferendo entre Ronaldo e o fisco marroquino e apesar de subsistirem alguns adeptos mais eufóricos que, num ato de cirurgia estética experimental, amputaram quatro dedos da estátua de D. José (há uns tempos foi uma estátua de D. Sebastião na estação do Rossio, o que sugere que para se estar seguro em Lisboa o melhor é não ficar parado muito tempo.)

E bastaram quatro minutos de jogo para que o otimismo fosse reforçado com mais uma vitamina CR7. Prever golos de Ronaldo está mais próximo da certeza matemática do que da adivinhação. O que deve dar bom dinheiro nas casas de apostas é saber com que parte da anatomia e em que minuto exato ele irá marcar. Por volta da meia-hora, livre perigoso contra Marrocos que desta vez foi marcado pelo mesmo jogador que, antes do jogo com a Espanha, tinha marcado quatro dezenas de livres sem sucesso.

Nesse momento, saí de uma estação de serviço entre Belgrado e Vranje e, a partir daí, fui recebendo mensagens que me informavam sobre o desenrolar dos acontecimentos. Um amigo dizia que só João Moutinho no meio-campo não era suficiente e que Portugal precisava de mais um número oito. E eu, a passar por Jagodina (que quer dizer qualquer coisa como “terra dos morangos”, para que não venham ler esta crónica sem que a vossa cultura geral aumente), concordei, porque com 12 jogadores em campo sempre era mais seguro. Quase no fim da primeira parte, a minha mulher lamentava que Portugal seja só Ronaldo. Isso depende de que Ronaldo falamos. Enquanto Portugal for só “este” Ronaldo estamos bem. O problema é quando Portugal for “só” outro Ronaldo ou voltar a ser “só” um conjunto simpático e inofensivo de jogadores como aqueles que, no passado, saíam dos campeonatos com a consolação moral do melhor futebol. Duas pessoas diferentes fizeram-me chegar mensagens de conteúdo idêntico: “o Guedes é burro.” Penso que não será uma referência ao jogador do Aves que marcou dois golos na final da Taça de Portugal.

Entretanto, passei o resto da viagem sem rede e virei a minha atenção para a paisagem, para a estrada e para os santos protetores de quem viaja no lugar do pendura. “Somebody loves you. Drive carefully”, dizia o placard na autoestrada, mas o meu editor sérvio não deve ter ninguém que goste dele pois estava a transgredir várias regras do código da estrada (pelo menos o português) incluindo conduzir a 180 km/h, sem cinto de segurança (como se estivéssemos na A1 em 1987) e a enviar mensagens de texto. Só quando estávamos a chegar a Vranje é que recebi uma nova mensagem: “Ganhámos. Jogámos pessimamente.” O que, tendo em conta as peculiares caminhadas desta seleção de Fernando Santos, me autoriza a dizer que foi melhor a exibição do que o resultado.