1 – Por entre écrans e jornais se têm passado os dias. São as sementes da guerra, fazendo do solo que pisamos o mais incerto dos poisos. Há um ano e há dois, pensávamos que nada poderia haver de pior de que um desconhecido vírus assanhadamente persistente e como este tremendo equivoco mede afinal o quão longe estávamos de algum dia, conviver desta forma tão intima com uma guerra, paredes dentro das nossa. Écrans e jornais dela se vêm alimentando – sustento amargo – numa vertigem tão voraz que quase banaliza um horror à nossas portas.

2 Foi preciso passarem-se mais de duas semanas para o Presidente da República reunir o Conselho de Estado, convocado com inexplicável atraso sobre o (muito) previsível agravar dos acontecimentos na Ucrânia mas deve faltar-me informação mais racional. Por mim não chego sozinha ás causas do silêncio oficial sobre a guerra em curso. Ninguém sentiu a necessidade de proceder aquela gesto que costuma distinguir – e definir – uma grande ocasião vulgarmente intitulado “falar aos portugueses”, a esta hora já confundidos e assustados. O céu esta a cair-lhes sobre a cabeça. Quanto ao governo-ex-governo-e-ainda-não-novo-governo, também muito pouco nos tem informado sobre a tão assombrosamente perigosa mudança que ocorre no mundo e das suas dramáticos aflições e consequências. Algumas claro, já chegaram. Um Executivo parcimonioso no uso do verbo quanto a guerra, mas lesto no gesto: que “construção mental” terá presidido à “engenharia” da fabricação do AUTOvoucher, por exemplo? Santo Deus.

Dizem-nos que não é altura para poluir a sagrada união que nos deve unir em momento tão grave. Justamente: momento tão grave reclamaria que nos explicassem melhor a desgraça, como enfrentá-la e que fazer – desde já – para tentar lidar com ela. A trapalhada da criação do AUTOvoucher não foi animadora. O ministro dos Estrangeiros a tranquilizar-nos sobre o tema dos combustíveis (“Portugal está numa posição relativamente protegida” em termos de abastecimento energético, uma vez que “a dependência da Rússia é residual”) lembra-me o gato escondido com a cauda de fora: falta o resto da frase. Esse imenso dinheiro que será preciso para o pagar — e pagar o resto da brutal factura da guerra que ainda mal começou. Isto é: o dinheiro terá de vir de outro lado ou substituir alguma coisa. Qual lado e qual coisa? Não sabemos, adormeceram-nos com o tranquilizante da certeza do combustível.

3 Às vezes penso que não estamos politicamente muito bem entregues – não é de agora. E embora admita poder não ser esta a mais feliz altura para o evocar não partilho de todo da vox populi segundo a qual devemos é estar agradecidos a quem chefia o Estado e governa o país. Subentendido: não estão eles a fazer o seu melhor?

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Depende. No reduto do silêncio a que se remetem, não. No atraso de algumas, digamos, já indispensáveis medidas preventivas, também não. Na obsessão com que exibem e partilham gestos que valem sobretudo pelo efeito do agrado popular que supostamente provocarão — idas a espectáculos de solidariedade, acolhimento de algumas dezenas de ucranianos que chegaram a Portugal por exclusiva iniciativa privada, como há dias vi em Leiria mas com o Presidente e o primeiro-ministro a terem as honras do palco –, também não.

Lembro-me de que na pandemia não se podia criticar as autoridades, com mochilas tão carregadas às costas. Podia e devia: formidáveis no sobre humano esforço com que se superaram durante longuíssimos meses, foram os médicos, enfermeiros, pessoal auxiliar, hospitais. Esses sim. E isso, sim.

As “autoridades”, apesar da sua óbvia preocupação e das respectivas responsabilidade, hesitaram, acolheram excitadamente competições desportivas internacionais com o país trancado em casa, permitiram um Natal assassino, contradisseram-se entre si, falharam na previsão e na antecipação. Em Portugal remedeia-se mais do que se previne. E se não fosse a intervenção directa e definitiva do Presidente da República nunca teria havido um militar a comandar as tropas da vacina . Ou alguém já esqueceu aquele senhor Ramos que inaugurou a vacinação com uma dose de infelicidade raras vezes observada no Estado?

Toda esta arenga para relembrar que tendo isto em memória tão doridamente recente, a perplexidade e o temor crescem. Agora trata-se da guerra. Estamos preparados para os seus malefícios? Para faltas e carências económicas e sociais? Por outras palavras: estamos bem entregues?

4 Entre páginas de jornal impressas de guerra e imagens de sofrimento, de vez em quando, por fuga ou exaustão, o olhar desvia-se e cai na realidade intra-muros.

Quantas vezes não li que “Moedas continua a ser pressionado” (para avançar para liderança do PSD). Por favor deixem o Moedas em paz! Será que o PSD não interioriza a fatal prova de irresponsabilidade que significa “pressionar” alguém que assinou um compromisso com a capital do país e sugerir-lhe que traia ambos, compromisso e capital? Que querem os sociais democratas que se entretêm nestas polcas que pensemos deles e do partido onde se abrigam?

Por este andar o PSD passará do partido médio que é hoje para partido irrelevante: política, económica, social, cultural e civilizacionalmente irrelevante. Já esteve muito mais longe.

E não nem a guerra consegue distrair-me destas vergonhas, tão indignantes me pareceram. Por favor, deixem o Moedas em paz!

PS. Viva o  Benfica!