A iconoclastia actual de raiz identitária pretende reduzir a história a uma mera projecção do presente. Trata-se de abolir a história como tal, rebatendo-a num continuum que irradia do presente e nele encontra os seus critérios e os seus interesses. Como tendência natural é bem compreensível, mas a história não tem por tarefa ratificar a inércia narcísica. Neste sentido, quanto mais viva for a experiência do sujeito, entendida lato sensu – memórias, sofrimento, reacções emocionais de indignação, desrespeito, discriminação, desvalor – tanto maior é essa sedução projectiva; afinal a árvore da vida ainda verdeja e não passou pela usura do tempo a teoria cinzenta.

A teorização da pós-memória no domínio das artes, porém, parte do princípio de que o substrato vivido deve passar para as segundas gerações, em particular no âmbito das descolonizações. O trabalho artístico vê-se assim como uma forma de reapropriação por empatia emocional. Tudo se passa como se a situação vivida originalmente tivesse de continuar viva nas segundas gerações. A substância vital em estado puro reencarna nas gerações seguintes. E quando não há memórias coloniais, a memória é prescrita, caucionando-se assim ideologicamente a fidelidade ancestral. As memórias não pertencem ao sujeito, que pode estar alienado, não o constituem como tal, uma vez que a falsa consciência o pode manietar. No essencial, o conteúdo das memórias é definido pelo crítico, cuja actuação filtra de antemão aquilo que qualificará depois como original, mas que, ainda antes de nascer, já é velho. Nunca passa de uma ratificação dos critérios impostos por estes novos Beckmesser. Aliás, por mais loas tecidas à diversidade, tudo redunda na denúncia das «narrativas oficiais» nunca definidas; neste plural sonso transparece a artimanha velha e relha da caixa de fundo falso: cada qual põe nela o que a cada momento lhe convém.

Assegurado o continuum histórico, a autenticidade está pré-fabricada e, insidiosamente, torna-se uma forma de chantagem sobre os artistas encurralados num dilema, de que nem sempre estão conscientes: ceder para sobreviver – humilhados e ofendidos. A injunção é clara como água: há um devoir de rien oser. E quando perguntarem a esses artistas quais foram os seus mestres, eles poderão retorquir: todos estes críticos e curadores. Oxalá ficassem por aqui. Mas não. Para os árbitros das memórias, as famigeradas «narrativas oficiais» são ruas de sentido único, não existem nas outras histórias. Não existem nas histórias das descolonizações, em que dificilmente uma única guerra da independência ou de libertação nacional teria tido êxito sem o apoio da União Soviética ou dos seus satélites. A censura da história serve apenas o propósito de estender às segundas gerações um espelho que lhes devolve uma imagem do que não existiu – gratifica-se emocionalmente o narcisismo a troco do sacrifício intelectual exigido. Uma manobra tanto mais perversa quanto maior a insegurança existencial – que não é pequena. A memória normativa instrumentaliza, reduz os sujeitos a objectos passivos, à pura natureza, que não pensam e já só sentem em segunda mão. Humilhados e ofendidos uma vez mais.

Se de um dos lados, o das vítimas, o alibi emocional, biográfico consegue por um instante dissimular a operação ideológica, o mesmo não sucede do outro lado, do lado dos opressores. Neste caso, a condição de vítima, o sofrimento do perpetrador, é indissociável da injustiça da causa por que lutou. A compaixão é distribuída à la carte – quem reconhecer o pecado é reintegrado na comunidade. Mas da comunidade circunscrita ideologicamente. Nesta forma canhestra de teodiceia, o mal é apenas um bem que se desconhece; uma vez integrado no continuum sem fissuras revela-se insubstancial. A segunda geração do outro lado da barricada tem de contextualizar o sofrimento alheio, o dos pais, como produto das narrativas oficiais que o iludiram. No zénite da sabedoria, o filho reduz a nada o sofrimento do pai, dissolve a situação trágica consubstancial à história – o pai tem de ser perdoado, não sabia o que fazia. E assim concilia-se a segunda geração com as exigências ideológicas e passa a si mesma um certificado de aprumo moral. Com a crueldade dos bons sentimentos, sente-se superior ao pai depois de o rebaixar. Tudo visto, trata-se tão somente de uma teologia sarrafaçada: o Filho é a verdade do Pai.

A despeito do aggiornamento lexical, esta contra-narrativa, oficial e oficializada, não engana ninguém: é vinho velho em odres novos. Depois de abandonadas as esperanças terceiro-mundistas, não passa de uma tentativa desesperada de continuar a luta nas metrópoles: aplica pateticamente um desfibrilhador ao cadáver apodrecido do sujeito revolucionário.

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