Se é verdade que as redes sociais ajudaram a democratizar o debate público, não é menos verdade que têm contribuído para o empobrecer.

O debate nas redes sociais vive da sua imediatez, da sua capacidade de emocionar ou revoltar, vive de emoções e não de razões. Ao mesmo tempo, por ser impessoal, convida também à falta de empatia para com o outro. É fácil escrever num ecrã aquilo que jamais diríamos a alguém olhos nos olhos.

Por isso qualquer tema tem potencial para se transformar numa guerra, com facções entrincheiradas, trocando acusações inflamadas e insultos.      E quanto mais “escandaloso” for o tema, mas irracional e irado será o debate

Quem passar os olhos pelas redes sociais em Portugal nos últimos dias poderá imaginar que a nossa sociedade se divide neste momento entre aqueles que querem apedrejar a mulher que colocou o seu filho recém-nascido num ecoponto e os que consideram que essa mulher é apenas uma pobre vítima da sociedade. Como se estivéssemos diante de um problema simples, onde só se pode ser a favor ou contra.

A única coisa simples neste caso é a consciência de que abandonar um recém-nascido despido num ecoponto para morrer é monstruoso. Qualquer que seja a circunstância da mãe, condenar à morte uma criança inocente, acabada de nascer, é (e peço desculpa pela repetição, nas não há outra maneira de o dizer) monstruoso.

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Mas uma pessoa não é definida apenas pelos seus actos. A monstruosidade de abandonar o filho à morte não transforma automaticamente aquela mulher num monstro. A condenação do acto não nos impede de olhar com misericórdia para uma humanidade de tal maneira desfeita e ferida que é capaz de um dos actos mais anti-naturais do mundo.

Pouco ou nada sabemos sobre a mãe desta criança. Cabo-verdiana, jovem, vivia na rua. Alguns jornais afirmam que vivia da prostituição, que não sabia quem era o pai da criança. Estes são os dados que possuímos. E nesses dados, e no seu crime, podemos entrever uma vida miserável.

Quer isto dizer que não deve ser julgada pelos seus actos? Evidentemente que deve. Mas caberá a um juiz apurar (e não lhe invejo a sorte) até que grau pode esta mulher ser responsabilizada pelo seu acto. E em última instância, caberá ao tribunal decidir se esta mulher deve ou não ser presa.

E este olhar de misericórdia também não significa desresponsabilizar a mãe pelo que fez. Culpar as circunstâncias ou a sociedade pelo seu acto é um insulto a todos os que vivem as mesmas circunstâncias sem praticar qualquer mal. É um insulto a Manuel Xavier, o sem abrigo que salvou aquele bebé.

Mas há uma diferença entre fazer desta mulher apenas uma vítima da sociedade e olhar para ela com compaixão pelo drama terrível que vive. Como disse antes, caberá ao tribunal decidir sobre a responsabilidade da mãe neste terrível acto. Penso que a nós nos cabe perceber o que pode ser feito para ajudar mulheres que vivem dramas como o desta rapariga.

Eu não consigo deixar de me sentir interpelado por saber que há em Portugal, no século XXI, mulheres que vivem na rua, que se prostituem para viver, que vivem toda uma gravidez sem qualquer apoio. Nada disto justifica que se tente matar um filho, mas um drama assim não nos pode deixar indiferentes.

É fácil para mim, sentado em casa, rodeado pela minha família, condenar o acto desta mulher. Mas eu nunca tive que dormir na rua, nunca fui abandonado pela minha família, nunca tive de vender o meu corpo e nunca, por razões evidentes, passei por uma gravidez, quanto mais sozinho e sem apoio. Não sei, nem sonho o que aquela mulher passou. E penso que a esmagadora maioria daqueles que hoje andam pelas redes sociais a pedir o seu apedrejamento, também não. Por isso choca-me o crime, espero que a justiça funcione, mas não deixo de sentir compaixão por aquela mãe. E espero que o tempo, e a justiça, sirvam para a sua recuperação e regeneração.

Quanto ao seu filho, milagrosamente salvo das garras da morte: que Deus o guarde e que nunca tenha de enfrentar as mesmas circunstâncias desesperadas de sua mãe.