Acho que tive uma epifania. Num momento, não percebia nada da questão dos metadados. No momento seguinte, tornei-me um especialista. A culpa foi da minha mulher. Corrijo: a responsabilidade foi da minha mulher. A culpa, como é óbvio, foi minha.

Aconteceu durante uma discussão conjugal. Senti-me uma espécie de São Paulo a receber a revelação do Senhor. A diferença é que Paulo caiu na Estrada de Damasco, enquanto a minha mulher ameaçou mandar-me dormir para a estrada. De Damasco, de Benfica ou a N247. É-lhe indiferente, desde que seja ao relento.

Começou, como tantas discussões, comigo a dormir:

– Acorda. O bebé está a chorar, vai lá.

– Hum?

– O bebé. Vai lá.

– Mas eu fui da última vez.

– E eu, das últimas 100, fui 57! Inclusive, houve ali uma altura, no início de Fevereiro, em que fui 12 vezes seguidas, porque tu estavas numa viagem de “trabalho” com os teus amigos. Aliás, ainda temos de conversar sobre essa viagem. Aquela noite em que disseste que estiveram a trabalhar até tarde, mas eu depois falei com a mulher do Jorge e ela disse que vocês tinham mas é ido jantar e depois foram a um bar e eu até te liguei às duas e meia da manhã e tu tinhas o telefone desligado, supostamente ficaste sem bateria, mas só no dia seguinte às dez da manhã é que ligaste outra vez o telemóvel, como se eu acreditasse que não o pusesses logo a carregar quando chegaste ao hotel. Onde é que estiveste?

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– Eu… Não me lembro. O bebé está a chorar, eu vou lá.

– Isso, protege-te com o bebé. Não julgues que te safas. Quando voltares vamos falar sobre as fraldas todas que eu mudei à miúda.

– Mas a miúda já tem 11 anos. Quem é que se lembra do número de fraldas que mudou há 11 anos?

E foi aqui que, de repente, tudo se tornou claro como água.

– Isso que tu estás a fazer é anticonstitucional.

– O que é que é anticonstitucional?

– Isso. Guardar informações durante muito tempo para depois serem usadas contra mim. São metadados e tu não os podes armazenar.

– Quem diz?

– O Tribunal Constitucional.

– Estás a ver algum Juiz aqui no quarto?

– Não.

– Então cala-te e vai mas é buscar o bebé.

Fui, mas com a lei do meu lado. E a perceber melhor o que são os metadados e em que é se distinguem dos meros dados. Se a minha mulher me perguntar: “Este vestido faz-me parecer gorda?”, eu vou responder: “Não”. Mas isso é irrelevante. O que importa são os metadados produzidos nesta breve interacção.

Aqui, os dados que eu forneci são a resposta “não”. Já os metadados que a minha mulher armazenou são: a) ele hesitou dois centésimos de segundo antes de dizer “não”; b) voltou imediatamente a olhar para a televisão; c) não disse nada sobre o penteado; d) passados três minutos já estava a perguntar “o que é o jantar?”; d) nessa noite, riu-se de uma coisa que viu no telemóvel, mas quando perguntei o que era disse só: “foi um meme que o Rui publicou no Instagram”; e) na semana seguinte perguntei se se lembrava da cor do vestido que lhe mostrei. Respondeu que era azul. Não era, era azul-turquesa.

Mais dia, menos dia, a minha mulher vai pesquisar estes metadados e usá-los contra mim. Se querem descobrir o que o Tribunal Constitucional vai decidir em relação aos metadados, não procurem textos antigos dos juízes. Vejam como é que estão os seus casamentos.