Sempre me incomodou a forma como os défices de atenção entraram, de rompante, pelas famílias portuguesas. Sobretudo quando uma ideia como essa parece tomar crianças sensíveis e atentas, acutilantes, argutas e sagazes — capazes de apanhar tudo “no ar”, de perceberem o segundo sentido de muitas das conversas dos adultos ou de juntarem pontas soltas no seu discurso e darem ares de um “instinto” inacreditável de adivinhar — em crianças com dificuldades de concentração e com défices de atenção.

Na verdade, esse tipo de formulação que se banalizou no discurso de muitas escolas e na preocupação de inúmeros pais foi, com o tempo, assumindo um formato de uma aparente epidemia atípica. Quase com naturalidade! Dificuldades de concentração, défices de atenção e hiperatividade parecem ter vindo a caracterizar um certo discurso sobre as crianças, sobretudo a propósito da escola. Independentemente das horas de trabalho diário que tenham. Daquilo que se passa com elas próprias e com as suas famílias. De terem bons ou maus professores. De não brincarem tanto como deviam. De não terem recreios dignos dos direitos das crianças. De não terem escolas amigas da criança. Etc. Mas serão os adultos, em contraponto àquilo que supõem sobre as crianças, tão atentos assim? Será que elas são “intrinsecamente” distraídas e agitadas e os adultos, “organicamente”, focados e atentos? Será que as crianças, em consequência de todos os constrangimentos com que as caracterizam, não pensam, ao contrário dos adultos? Se é que acham assim, onde andam os adultos com a cabeça?…

Já a um outro nível, é também comum ouvir-se, com um leveza estonteante — a propósito de uma trica, de um arrufo ou de uma briga entre elas — que “as crianças são muito cruéis umas para as outras”. Por outras palavras, “naturalmente” más. Mesmo que elas se agridam face a face e os adultos o façam, vezes demais, pelas costas. Mesmo quando somos nós que as educámos para o bem, para a lealdade ou para a bondade. Serão elas cruéis ao arrepio do que veem em nós? Ou será, antes, que, em vez de olharmos para as maldades de que somos capazes, nos emboscamos em verdades convenientes, como a crueldade que atribuímos às crianças? Em contraponto com as crianças, nós — os adultos — seremos atentos e bons. Será mais ou menos assim. A forma como os adultos parecem ser distraídos nestes apartes é vertiginosa e inquietante. Por que caminhos se perdem a inteligência e a sensatez humanas?…

Acontece que, chegados a uma guerra (muito próxima de nós), as crianças dão um sinal de que, ao contrário daquilo que os adultos imaginam, estão atentas. Querem saber o que é guerra. Querem saber porque é que pessoas que não se conhecem — regra geral,  jovens — se odeiam e se matam, umas às outras. Querem perceber quem são os maus e porque é que eles são maus. Querem compreender porque é que os maus, porque são maus, não são castigados e não perdem. Querem saber porque é que aos maus incomoda tanto que os bons existam. Querem certificar-se que os maus não chegarão a elas. E, caso venham a chegar, o que é que nós faremos para as proteger e para os vencer. “Mamã, vamos morrer?….”, torna-se uma pergunta que elas repetem. (É nestas alturas que todos nos sentiríamos melhor se elas fossem distraídas…) Depois de uma pandemia em que vultos de morte andaram por aí, esta guerra não deixa de ser um trambolhão numa ideia de segurança inviolável que todos lhes fomos alimentando. De uma forma cínica, perante uma guerra, e diante de tantos lugares comuns a propósito das crianças, seria motivo para se dizer aos pais: não se preocupem! As crianças não dão por nada. Elas são, intrinsecamente, distraídas. Para além do mais, agitadas. Pensam de fugida. E, depois, cruéis, de verdade, são elas; umas com as outras…

Mas nada acontece como todos, preguiçosamente, vamos deixando que se suponha em relação às crianças. E elas, atentas e bondosas, querem perceber de que forma é que pessoas boas se tornam más. Como é que pessoas como os pais delas matam outros pais de outras crianças. Como é que as crianças, quando morrem, são só efeitos colaterais duma guerra (e nunca a tradução clara de que ela representa um crime absurdo contra a humanidade).  E, já agora, porque é que, num tempo de igualdade de género, os rapazes com mais de 18 anos  têm de ir para a guerra e as raparigas não.

“Como se pode explicar a guerra a uma criança?”, tem sido a pergunta que mais me têm feito, nos últimos dias. Como se pode explicar às crianças que, afinal, os maus das histórias existem, de verdade, e que não são nem monstros verdes nem bruxas mas pessoas iguais a elas e aos pais?… Como se pode explicar, de forma racional e compreensível, a estupidez humana?… E a maldade e o ódio, dizendo-lhes que elas podem sentir-se sempre seguras apesar das tragédias que vêem na televisão?… E, apesar de nos sentirem assustados, que nós não deixaremos que nada de mal lhes aconteça?… O que se passa é que — talvez por agitação e por distração nossa — quando não entendemos uma coisa, propomo-nos explicá-las às crianças. Como é que se explica a guerra? A guerra não se explica; afronta-se! Quando, diante dela, nos mobilizamos para a verdade, para a bondade e para a paz.

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