Raramente tantos deveram tanto a tão poucos, parafraseando alguém que sabia bem do que falava. É o que se pode dizer da dívida que o país está a acumular para com médicos, enfermeiros, auxiliares e outros profissionais e voluntários de saúde, designadamente alunos, que estão nos hospitais a combater esta pandemia submergidos pelo mar de perigo, morte e sofrimento em seu redor.

Perdi a conta a quantos profissionais de saúde morreram já contaminados. Mas este é um dado merecedor do maior relevo. Sei que recentemente houve notícia de mais cinco médicos falecidos.

A gente da saúde, Portugueses sem defesa como os outros, tem enfrentado o risco imenso de lidar diariamente com os doentes contaminados, a desorganização das estruturas como as ARS e a Direção Geral de Saúde, com chefias nomeadas com base em critérios políticos, que, como já se percebeu, pouco mais conseguem fazer que reagir de modo atarantado aos acontecimentos, e um poder político que compreende finalmente – esperamos nós – que a cartilha ideológica não resolve, não mitiga nem justifica a negação da realidade, mas que não desiste de a tentar abafar.

Enfrentam ainda, para nossa vergonha coletiva, administrações regionais de saúde e administrações hospitalares que parecem dar mais importância às diretivas políticas de branqueamento das situações de descoordenação e ausência de previsão do que ao seu dever público de informar com verdade numa hora negra como esta.

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Enfrentam uma comunicação social anestesiada, em que as convicções ideológicas de muitos jornalistas e a conduta de chefias de redação parece justificar, perante a sua consciência, o suprimir das perguntas difíceis e a denúncia das verdadeiras situações de horror que neste momento se vivem na generalidade dos hospitais portugueses.

A gente da saúde fica seguramente perplexa com a indiferença do Governo e do sistema político perante a necessidade de, neste momento, pagarem cada hora extraordinária que estes profissionais estão a fazer, muito para além de qualquer dever profissional, de compensarem voluntários que estão a correr todos os riscos sem o apoio necessário, de premiarem financeiramente, de imediato e de modo significativo, estes profissionais pela sua abnegação imensa.

Nada de justiça remuneratória num momento destes, nada de reconhecimento material mais do que merecido. Cinicamente, os socialistas, isolados no sistema político, ignoram  o imperativo ético de premiar os mais sacrificados, mas decidem vacinar deputados, autarcas e funcionários da AR antes dos mais idosos e dos que têm maiores fragilidades de saúde e simultaneamente com bombeiros e polícias, estes sim, sempre em risco. Porquê?

Porque podem. Porque perderam a noção da decência comunitária, porque se põem em bicos dos pés relativamente à sua própria importância e pela indiferença relativamente aos mais frágeis do seu próprio povo. É outra forma de dar uma lição ao mundo. Uma lição de indiferença e arrogância que Portugal, felizmente, consegue quase sempre evitar.

É doloroso ver como, perante uma enormidade destas, a comunicação social não tuge nem muge. Toda a oposição e até alguns partidos que apoiam o Governo se opõem a esta atitude, velhaca no seu âmago. Mas a comunicação social, os órgãos de informação, a quase totalidade da imprensa, as televisões, quase todas…tratam o assunto ao de leve. Relembro outros tempos de entusiasmo jornalístico demolidor e pergunto-me: que aconteceria no país se tivesse sido outro Primeiro-Ministro a decidir vacinar políticos de segunda e terceira linhas e funcionários do Parlamento antes daqueles que mais necessitam? Onde já iria o nível de denúncia, de indignação de jornalistas e de comentadores?

É o que temos e vamos morrendo mansamente aos milhares.

Isto, quer se queira quer não, é um dos fenómenos que leva ao descrédito do jornalismo e da imprensa e por consequência facilita o crescimento do populismo. O desprezo da classe política e jornalística pelas pessoas humildes, que desse modo ficam sem defesa perante um Estado tornado instrumental para a manutenção e o privilégio de uma classe política ideologicamente enfeudada e  instalada no poder.

Os políticos no poder não são virgens surpreendidas perante o crescimento do populismo.

Afinal e contra a expectativa, nem perante o desafio da mortalidade este poder conseguiu pôr os pés no chão.