Uma menina de três anos morreu, esta semana, vítima de sequestro e de maus tratos. Estava sinalizada como estando em perigo, praticamente desde que nasceu. Com cinco meses de vida, terá sido realizada uma avaliação, levada a efeito pela equipa técnica multidisciplinar da Segurança Social, que terá aplicado uma medida de promoção de apoio junto dos pais, com supervisão da avó materna. Que os pais não terão aceite. Um ano depois, a Segurança Social considerou existirem fragilidades associadas ao agregado familiar, designadamente a existência turbulência na relação dos pais. Mas, entretanto, terá transmitido ao tribunal que, de acordo com a informação prestada pela avó materna, a situação de violência entre o casal teria “acalmado”, por mais que nenhum dos pais trabalhasse. Em Março deste ano, depois de nova visita domiciliária, a Segurança Social terá concluído que não existiriam sinais de perigo no contexto da família desta menina, o que terá levado o Ministério Público a promover o arquivamento do processo de promoção da protecção desta menina, com a anuência do juiz, o que terá acontecido a 30 de maio deste ano. Esta criança será a mais nova de seis irmãos, sendo a única confiada à guarda e aos cuidados da mãe. Alguns dos irmãos estarão com outros familiares. Dois deles estarão institucionalizados. No entretanto, multiplicaram-se declarações sobre a morte desta menina. Somaram-se depoimentos de familiares, vizinhos e técnicos alegando desconhecimento acerca de quaisquer sinais de perigo que, por omissão ou por negligência, tenham evitado denunciar. Algumas pessoas, com responsabilidades nestes processos, vieram recordar que estas situações têm variações muito súbitas, por mais que a história desta família de imprevisível não tenha nada. Houve quem recordasse que as comissões cumprem os quatro meses para instruir estes processos. E ficou-se com a sensação – agreste! – de que “o sistema” se protegeu a si próprio. Uma vez mais. De forma mais eficaz do que protege as crianças! Para além disso, houve a fúria justiceira que os “populares” trouxeram às televisões, que só foi ultrapassada pela falta de pudor que grande parte delas colocou nas imagens e nos comentários que, a propósito desta tragédia, foram trazidos a público. E, claro, houve várias pessoas ligadas a órgãos de soberania que manifestaram, como há muitos anos acontece quando sucede uma tragédia em torno duma criança,  a necessidade de se dar à protecção das crianças outro rigor. Por estes dias, o relatório anual da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e de Protecção de Crianças e Jovens tornou público que, em 2021, terão existido 40075 crianças em perigo.

  1. Uma criança será considerada em perigo quando está abandonada ou vive entregue a si própria; sofre de maus-tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua situação pessoal; é obrigada a actividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectam gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; assume comportamentos ou se entrega a actividades ou consumos que afectem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento, sem que os pais, representante legal ou quem tenha a guarda de facto, se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.
  2. Só há crianças em perigo porque existem pais perigosos. Logo, ou muitas vezes se aplica o termo “em perigo” de forma exagerada e injusta, em relação a muitos pais, ou não se retirarão as consequência devidas duma designação tão grave como essa quando se trata de proteger uma criança.
  3. Quanto mais cumulativos e mais violentos forem os maus-tratos, mais irreparáveis e irressarcíveis são os danos que provocam, levando a que, progressivamente, danifiquem, sem retorno, os recursos saudáveis de uma criança.
  4. Quanto mais os maus-tratos forem protagonizados pelas pessoas preponderantes da vida de uma criança (sejam elas o seu pai ou a sua mãe) mais irreparáveis se tornam, mais os danos que daí decorrem comprometem os seus recursos psíquicos, sociais e cognitivos. Mais serão promotores da sua infelicidade. E mais se repercutirão nos seus putativos desempenhos parentais futuros.
  5. Que sentido tem – como, amiúde, sucede – que, para efeito da sua guarda e da salvaguarda dos seus direitos e das suas necessidades, haja pais classificados, hoje, como promotores de perigo para o seu filho e, sem quem nada de substantivo se altere na sua vida, ainda assim, permaneçam com eles à sua guarda?
  6. Que sentido tem classificar, de forma fundamentada, um ou os dois dos pais de uma criança como putativamente perigosos para o seu desenvolvimento e, depois, considerá-los esclarecidos e competentes para autorizarem que uma comissão de protecção de crianças e de jovens intervenha no plano de apoio à sua família, no sentido de proteger esse mesmo filho?
  7. Que sentido tem privilegiar sempre a recolocação das crianças em perigo na sua “família natural” se, ao longo de anos e anos, ela for dando provas de não reunir os requisitos mínimos para que seja uma família? A ideia de estar ao pé da mãe ou do pai, mesmo quando eles são negligentes ou maltrantes, fará melhor a uma criança do que protegê-la, antes de mais, de quem lhe faz mal, mesmo que, para tanto, esteja à guarda de uma instituição que a acolha e a proteja?
  8. Que sentido tem, considerar – para efeito da sua guarda e da salvaguardada de tudo o que se considera indispensável para o seu desenvolvimento – os pais de uma criança como promotores do perigo em relação a um, a dois ou a mais filhos (como aqui e em muitas outras vezes acontece) e concluir que, considerando outros filhos, serão, até, competentes para os terem à sua guarda?
  9. Que sentido tem considerar uma dada família como perigosa e, depois de sinalizar uma criança nessa família como estando em perigo, deixá-la classificada, interminavelmente, dessa forma, sem que, ao fim de um determinado tempo, ela não seja, definitivamente, protegida da sua família?
  10. Como pode uma medida destas ser considerada urgente e, ao mesmo tempo, essa urgência não ser definida nem em termos de tempo máximo nem nos requisitos indispensáveis para que essa medida seja removida?
  11. Considerando a sua família, os seus irmãos e o histórico de preocupações que motivou a sua classificação como estando “em perigo!”, como pode esta criança não ter sido considerada em perigo, em Março deste ano, levando a que a curadoria do Ministério Público em relação a ela tenha sido considerada desnecessária?
  12. Como pode um contexto como este deixar de ter merecido preocupação das equipas que a deveriam ter protegido?
  13. Onde estavam os avós, outros familiares e os vizinhos desta criança, e até que ponto não será razoável que se pergunte se não deverá o seu papel em todo este processo ser considerado negligente, e, por isso mesmo, conviventemente maltratante, e susceptível de ser interpretado como omisso em relação ao auxílio que esta criança exigiria?
  14. Com que autoridade moral pode o Estado tecer considerações em relação a situações trágicas como esta se nunca achou urgente organizar uma verdadeira e eficaz rede de protecção de crianças, e dotá-la de recursos, de técnicos experimentados, de protocolos de intervenção claros (que “furem” os pequenos poderes), e vai permitindo que a protecção de crianças se faça com muitas pessoas empenhadas e com espírito de missão mas que, em inúmeras circunstâncias, protegem em part-time, em voluntariado ou em horários pós-laborais?
  15. De entre as 40074 crianças restantes consideradas em perigo no ano passado, que garantias nos dará um “sistema” – que falhou, de forma muito grave, neste caso – de que não haverá muitas outras que poderão, tal como esta, estar a merecer muito menos cuidados do que uma classificação de perigo exigiria que merecessem?
  16. Quantos casos-limite como este serão mais necessários para que a protecção das crianças seja estruturada de outra maneira sem que, ciclicamente, nada se repita desta forma?

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