A minha querida amiga Ângela Vila-Real deu a sua Última Lição este ano, no ISPA, porém continua a sua clínica como psicanalista e o seu minucioso trabalho de relojoaria fina. Há algum tempo, no pequeno grupo que temos no WhatsApp, enviou-me uma mensagem, uma nota de cuidado e preocupação a propósito de um texto que eu havia escrito, das «missivas de ódio» que todos recebemos, do risco que corremos, ela própria também, sobretudo desde que trabalha com a população LGBT+. Risco minor, no entanto. Tem de ser. Não se pode viver à sombra do medo. Tenho pensado nisto: ter uma opinião é um risco. Ter uma prática é um risco. Na verdade, sempre foi um risco. Da literatura à política. Afinal, pensar também é julgar, decidir e declarar. Pensar é generativo da prática. E é uma dissonância verbal num país de muitas intenções sem acções que lhes correspondam. Quando, de facto, correspondem, algo se agita, afinal, todo o verbo é «faça-se» e nós vivemos no imobilismo do status quo tanto quanto no imobilismo das coisas do Estado – perdoar-me-ão o trocadilho. Risco, risco a sério, risco major, corre Portugal por falta de verbo. E temo-lo aceitado. Porquê?

Em situações de desacordo político vemos os franceses a tomar conta das ruas, insubmissos, ou os espanhóis, ambos os nossos mais próximos, mas tão distantes daquilo que somos. Não sei se é um medo operativo que nos cala, um medo de séculos enraizado na pobreza ou se é só desesperança. Mas sei, com a mais absoluta certeza, que ao lado deste silêncio que quase tudo aceita resignadamente, que se abstém de ser e de ter um lugar na voz pública, das eleições às ruas quietas, corre subterrâneo um sentimento de revolta que emergirá porque emerge sempre e quase sempre convulsivo e danoso: assim cresceram Le Pen e Mélenchon. A impotência quando explode, expressa-se de forma desadequada e megalómana qual adolescente.

Na sequência da colecção infeliz de casos políticos protagonizados pelo governo, que placidamente aceitamos, arriscamos distrairmo-nos do essencial: este não é apenas um executivo de segunda linha, é um governo de fim de linha seis meses volvidos sobre a maioria absoluta.

Vozes sucessivas, experimentadas, de alto perfil, e de diferentes orientações ideológicas, afirmam António Costa como o «melhor político da sua geração». O que fez este político de excepção? Qual é o seu legado? Presumindo que ser o melhor político da sua geração é mais do que sobreviver, inclusive pelos métodos que lhe conhecemos, aos seus amigos tanto quanto aos seus adversários. E por uns e por outros nem me refiro à oposição, mas aos de dentro do seu próprio partido e convidados. Afinal, o que é ser um político? É jogar um jogo territorial e predatório de alianças e traições ao serviço da manutenção do poder?

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Os números da nossa realidade falam do legado de mais de 20 anos deste Partido Socialista. Na Europa dos 27 ocupamos o 21º lugar em PIB real e per capita. A dívida pública é de 130% do PIB. A dívida total é de 330%. A taxa de intensidade de pobreza era, em 2020, de 27,1%. 1,6 milhões de portugueses vive abaixo do limiar da pobreza. 17,5% da população com mais de 65 anos vive em situação de pobreza extrema. 9,5% dos trabalhadores portugueses vive abaixo do limiar da pobreza. Têm emprego, mas são pobres. Num país a envelhecer a um ritmo que se estima venha a superar a Itália, saíram de Portugal, na última década, cerca de um milhão de portugueses; num país a envelhecer, ter filhos é um factor de pobreza – como, aliás, ser sozinho: 40% das famílias com 3 ou mais crianças vive em risco de pobreza. Este texto fundamental, de Ricardo Reis, no Expresso, espelha-nos.Não se pode ter sonhos de futuro onde nem se consegue ter perspectiva de futuro.

Do salário médio à emigração. Dos mortos por COVID ao excesso de mortalidade. De Pedrogão à Serra da Estrela. Da falta de planeamento ao envelhecimento da população. Da dependência do turismo à venda do país a retalho. Da crise da habitação à expulsão dos residentes. Da destruição da classe média ao favorecimento de uns e à aniquilação de outros.

No momento em que uma ministra incompetente se demite, uma ministra de uma pasta ingrata que viajou à boleia do sucesso de Gouveia de Melo, ministra-estrela ascendente quando conveio, estrela cadente quando deixou de convir, a mensagem do «melhor político da sua geração» é: «quem quer mudanças tem que derrubar o governo.»

Eu quero mudanças.

A autora escreve segundo a antiga ortografia