O sistema criado no pós-II Guerra Mundial permitiu uma época de paz relativamente estável um pouco por todo o mundo. Os conflitos armados aumentaram, é certo, mas tratou-se de episódios regionais, esporádicos, sendo que as épocas das grandes guerras ou a tragédia da guerra total parece ter acabado definitivamente. Mas ao contrário da tese de Francis Fukuyama (The End of History and the Last Man), nada é definitivo na disputa entre nações e na vida das sociedades. A democracia liberal não triunfou, estando a regredir em vários lugares, inclusive dentro de um dos principais faróis democráticos internacionais, a União Europeia (UE).

Como quase sempre, a fonte de destabilização é económica. A crise financeira internacional (com início nos Estados Unidos da América, transformando-se numa crise das dívidas soberanas na Europa) foi o ponto de partida, fechando um ciclo de grande poder de compra das classes médias ocidentais. Esse poder de compra possibilitou um razoável grau de felicidade no Ocidente, ao mesmo tempo que alimentava as novas economias na Ásia, que vendiam barato. Esta relação criou um período de grande crescimento internacional na generalidade. A inversão desta ordem, ou seja, a perda de poder de compra no ocidente e o aumento de importância da Ásia, com a China à cabeça, desestabilizou a ordem que permitia o equilíbrio que alimentava a paz.

Grandes oportunistas sentem fraqueza, e é isso que lideres como Vladimir Putin ou Xi Jinping estão a fazer, a aproveitar a oportunidade. De um lado, Putin tem uma pequena janela de oportunidade para poder impedir o avanço do NATO/UE, numa operação em que (ao contrário do que muitos pensam) não teve qualquer escolha. A aventura internacional de Putin começa precisava quando a Rússia começa a colapsar economicamente, no inicio da década passada. Antes disso, a Rússia tinha boas relações com os EUA, principalmente na presidência de George W. Bush, onde até foi a favor da intervenção americana no Afeganistão, no pós-11 de Setembro. A crescente contestação dos russos para com Putin, devido a questões económicas, levou o Presidente russo a tentar algo para entreter os russos. Que melhor entretenimento do que um inimigo comum (o ocidente) e tentar regressar aos tempos de glória da União Soviética? Putin tem uma janela de oportunidade que, como referido, é pequena, por três razões especificas: já tem 70 anos e continua uma incógnita a questão da sucessão; a UE e os EUA vivem tempos de divisão interna; a economia e demografia da Rússia estão em rápida decadência, proliferando ao mesmo tempo novos movimentos políticos internos e rivais externos que podem competir com a Rússia, principalmente na sua retaguarda (China).

A outra razão de instabilidade é a sempre referida China. O grande império do meio é a nova potência internacional, não devido ao Partido Comunista chinês ou por qualquer razão ideológica, mas pelo enriquecimento que teve vindo do comércio que fez com o ocidente e os países ricos. A China começa o seu verdadeiro caminho para o poder não com Mao Zedong, mas com Deng Xiaoping, liberalizando a economia e começando as suas grandes relações económicas com o ocidente. A classe média ocidental transferiu parte da sua riqueza para a China, ao mesmo tempo que as unidades produtivas também foram deslocalizadas para aquele país. Assim, a China está a fazer aquilo que qualquer país que se torne poderoso faz, projeta a sua força para fora, influenciando à sua imagem os acontecimentos internacionais e chocando com os interesses de outros países. Este facto iria sempre acontecer, com ou sem Xi Jinping, mas algo é percetível: com a presidência de Xi Jinping a projeção desta força tornou-se mais precoce e com bastante mais força, considerando que um dos motores da ideologia de Xi é o nacionalismo.

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Uma abordagem mais discreta (um dos pilares de Deng Xiaoping) foi posta de parte, sendo que uma das características do nacionalismo é a primazia de um país e os seus interesses sobre os restantes. Xi Jinping quer os interesses da China com uma maior relevância a nível internacional, e muitos desses interesses competem diretamente com a principal superpotência internacional, os EUA. Tal acontece em variados assuntos e regiões, mas principalmente na região da Ásia-Pacífico e em matérias comerciais. O comércio e a economia serão o ponto central na relação dos dois países, porque são a primeira e segunda maiores economias mundiais. Mas não será apenas essa a razão, a outra é que em matéria militar a China (como o resto do mundo) está bastante atrás dos EUA. Os EUA têm as forças armadas mais poderosas de sempre, tanto a nível de poder de fogo/combate como de logística e tecnologia. Ironicamente este é um facto que não mudou muito desde o fim da II Guerra Mundial, tendo em conta que os EUA têm bases militares em todos os continentes, espalhadas por mais de 80 países. Entre esses países estão os seus principais aliados na Ásia-Pacífico, a Coreia do Sul, o Japão, Austrália e Filipinas. Isto significa que possui milhares de militares junto às fronteiras da China. A China por sua vez tem apenas uma base militar fora de fronteiras, em África, num pequeno país chamado Djibouti.

A força militar da China, tida como uma dos principais a nível mundial, não é para desconsiderar mas fazendo a análise comparativa com os americanos podemos constatar que os chineses não estão prontos para uma projeção militar muito longe das suas fronteiras, e muito menos contra os EUA. Estão sim preparados para uma defesa eficaz da sua área de atuação, na Ásia-Pacífico, e para participar cirurgicamente em operações internacionais (em conjunto com a ONU por exemplo). São uma grande potência regional nesses termos. No entanto a nível económico têm uma influência gigante nos acontecimentos internacionais e é isso que constitui, principalmente, a sua força. Assim, será na economia que a China irá apostar, influenciando os países a seguir os interesses chineses, fechando ou abrindo a torneira do investimento ou comércio, de acordo com o que pretende.

A Rússia está preparada para projetar a sua força além fronteiras ofensivamente porque continua com o poder militar da União Soviética, a anterior rival direta dos EUA. A China não terá esse trunfo, continuando ainda a desenvolver a sua força militar, atrás dos EUA e dos russos. Ambos, Rússia e China, mesmo com as suas fraquezas aparentes e cada um com as suas razões, defendem os seus interesses com mais confiança, algo que não acontecia há 10 anos. Estes choques estão a criar a instabilidade referida. Existem ainda outros países que podem, com o passar dos anos, juntar-se a esta instabilidade no que toca às suas reivindicações internacionais, a Índia e a Turquia.

Olhando para trás, este período de paz, estabilidade e crescimento económico é invulgar. Com isto não deverá o leitor pensar que é uma inevitabilidade voltar às épocas da guerra total. Conceitos como a globalização económica, o desenvolvimento científico e tecnológico e a formação do Estado social (welfare) fazem com que se torne mais difícil voltar aos tempos em que existiam Ministérios da Guerra e não da Defesa. As diferentes nações estão mais interligadas que nunca, o que torna o pensamento individualista muito mais difícil. Mais que isso, a maior oportunidade e conforto para as populações faz com que existam mais escolhas para a sua vida do que a inevitabilidade do conflito.

Isto não invalida que problemas se transformem em conflitos, sendo que a maior dificuldade de guerras totais pode explicar a multiplicação dos conflitos localizados. Esses conflitos, no mundo interligado atual, podem ser tão ou mais prejudiciais do que uma guerra total. O que acontece na fronteira entre Ucrânia e Rússia pode ter repercussões trágicas em Portugal. Por exemplo, num cenário de conflito entre russos e ucranianos os mercados serão prejudicados, a inflação crescerá e as taxas de juro aumentarão, ferindo gravemente um país como o nosso, que é altamente endividado. Há 100 anos atrás, um cenário de conflito armado a mais de 4000 km de distância, talvez não prejudicasse tanto a vida em Portugal.

No que toca a soluções para voltar a estabilizar o sistema internacional, a resposta talvez passe por aquilo que já estamos a fazer. Intensificar as relações económicas entre os diferentes países, aumentar a investigação em ciência e tecnologia e apostar na continuidade do Estado social (impedindo a pobreza geral e a procura por respostas extremas). Existe no entanto uma variante que merece menção, e são as alterações climáticas. Este é um fator que pode desestabilizar por completo relações entre países e portanto será importante mitigar as catástrofes do clima, aumentado a velocidade da transição energética a nível internacional.