“Não há nada de novo sob o sol”, diz sabiamente o Eclesiastes, e eu não podia estar mais de acordo. “O que foi é aquilo que será, o que se fez é o que se fará”. Com algumas excepções aparentes, as mesmas coisas  retornam eternamente e é fútil julgá-las novidades. Pelo menos no que diz respeito às maneiras de pensar. Quanto aos seus objectos, é de admitir alguma variação. Mas quanto aos costumes não. Eles repetem-se vezes sem fim, e, quando os cremos passados, eles de novo aparecem, logo ao virar da esquina.

Esta verdade básica é-nos lembrada quotidianamente. Um exemplo entre mil é a recente polémica em torno dos acordãos do juiz Neto de Moura. Confesso que não os li, como praticamente não li, tirando os títulos, o muito que se escreveu sobre o caso. De qualquer maneira, creio ter percebido que o juiz, num desses acordãos, se sentiu na necessidade de proceder ao que ele aparentemente supõe ser uma resenha histórica das reacções masculinas ao adultério, que ele considera pecaminoso, sendo a conclusão que toda a gente tirou daí (provavelmente com muita razão) a de que aquilo acabava por ser uma legitimação do comportamento dos cíclopes que, dentro ou fora da sua caverna, espancam as suas mulheres. O argumentário do juiz, se se assemelha à ideia com que dele fiquei, não me é menos repulsivo do que ao grosso da opinião publicada. Mas numa coisa ele segue um velho costume assaz curioso que muitos juízes parecem particularmente afeiçoar: a incursão pelos grandes frescos morais.

E o meu espírito voou para muito tempo atrás, mais precisamente para 1990. O arquitecto Tomás Taveira, na altura uma figura muito pública por causa, entre outras coisas, das Amoreiras, tinha movido um processo a um tal senhor Neves, que havia entrado na posse de uma cassete, que entretanto difundira, onde se via o dito arquitecto a sodomizar uma ou duas jovens. Muitos anos antes da net, aquilo tinha-se imediatamente tornado objecto de todas as conversas e de intensa excitação nacional. Excelentemente, o tribunal considerou provadas todas as acusações do arquitecto Taveira e obrigou o senhor Neves a multas e indemnizações. Tudo teria sido óptimo não fosse uma coisa: a prosa da juíza Belo Redondo, de que a imprensa revelou alguns excertos.

O “Público”, na altura, avisava (não me parece que ironicamente) que o texto da juíza continha “avultadas reflexões sobre questões de ordem moral e de costumes” e que aí se sustentava “uma lógica de pensamento que afasta(va) qualquer óptica moralista sobre a questão da sexualidade, do prazer e do desejo”. Com efeito. “O debate, escrevia a juíza Belo Redondo, qualquer que seja o tema, tem sempre, pelo menos, a utilidade de esclarecer ideias e situações.” “A este nível, continuou a juíza, quase se poderia considerar que o «caso Taveira» teve um «efeito acelerador» na lenta evolução dos quadros ético-comportamentais dos portugueses, de um universo fechado e «clerical» — onde o sexo era assimilado ao «mal absoluto» e, por isso, escondido – para o espaço aberto da «sociedade do prazer», com a sua moral de liberdade e de assunção tolerante das diferenças individuais.” O advogado do arquitecto Taveira manifestou a sua felicidade com a decisão do tribunal, expressa em tão brilhante prosa, afirmando que este acordão permitia ao arquitecto Taveira um “certo alargamento do seu espaço de enunciação possível”. Decididamente, não queria ficar atrás da juíza Belo Redondo em matéria de riqueza verbal, mesmo correndo o risco de uma frase algo equívoca.

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Não coloco no mesmo plano os acordãos do juiz Neto de Moura e o da juíza Belo Redondo, mas num ponto ambos parecem partilhar um traço comum: a necessidade sentida de enquadrar as suas decisões em vastas considerações generalizantes sobre o percurso intelectual da espécie humana. E é essa necessidade, e a persistência dela ao longo dos tempos, que merecem interrogação. Porque carga d’água se sentem obrigados os juízes a estas coisas, que manifestamente não são imprescindíveis para a sua actividade?

Uma hipótese é que o apelo à moral lhes surge como algo irresistível. Num caso e noutro, por via da moral (a deles), assiste-se à intromissão de uma subjectividade que não tem consciência de o ser. E tal intromissão é um abrir de portas à introdução do arbitrário, que é a coisa que mais parece de temer num juiz.

Seja como for, “o que foi é aquilo que será, o que se fez é o que se fará”. A “lenta evolução dos quadros ético-comportamentais dos portugueses”, quaisquer que sejam os “efeitos aceleradores” que por aí apareçam, preservará sempre como núcleo irredutível um gosto indisfarçável por uma impalatável verbosidade. Por isso, aquilo de que tive notícia sobre os acordãos do juiz Neto de Moura não me surpreendeu por aí além. Enquadra-se perfeitamente numa tradição com vastos pergaminhos. E não é amanhã que vamos sair dela. O ridículo – que pode variar em perigosidade para os indivíduos que têm o azar de serem objecto de acordãos destes – continuará por aí, sempre alargando o seu “espaço de enunciação” e muito contente de si. Nada de novo sob o sol, efectivamente.