No mundo de agora, há uma coisa de que podemos ter a certeza: todas as crises, sejam elas quais forem, serão sempre crises da União Europeia. Foi assim com a guerra do Iraque em 2003, em que Tony Blair e a “nova Europa” se separaram da “velha Europa”; foi assim com a crise das dívidas soberanas em 2011; foi assim com o afluxo de migrantes em 2015; e, agora, com a epidemia do coronavírus. Seja qual for o motivo da crise, é certo e seguro que uma parte da UE não concordará com a outra parte, e que toda a gente, muito exaltada, começará a falar do fim da UE.

Nada disto é verdadeiramente surpreendente. A UE não compreende apenas Estados com níveis de desenvolvimento desiguais, mas com economias e modelos sociais diferentes. As taxas de inflação registadas antes do Euro, como uma vez explicou Vítor Bento, desenham a fronteira entre duas culturas, uma de moeda forte, a norte, e outra de moeda fraca, a sul. Julgou-se, em tempos, que a integração europeia poderia, contra a história, fazer do continente um bloco homogéneo. Não fez. Serviu apenas para sentar à volta da mesa países com pontos de vista e interesses contraditórios.

Em 2012, pedia-se muito que nos deixássemos de moralismos ao discutir a crise das dívidas soberanas. Sim, deixemo-nos de moralismos. Não falemos do parasitismo do sul, mas não falemos também da mesquinhez do norte. Admitamos apenas que todos os Estados têm o direito de defender os seus interesses. A Itália tem o direito de exigir transferências de dinheiro da Alemanha, e a Alemanha de exigir que a Itália equilibre as suas contas. As “crises” podem limitar a margem de manobra de um ou de outro para impor as suas preferências, mas nunca eliminarão as diferenças de perspectiva.

Invocar a “solidariedade”, no meio das “crises”, para ignorar os interesses dos outros não é sério. Os políticos e os eleitorados do norte já são suficientemente solidários, ao prestarem-se a ser contribuintes líquidos da UE. Dir-me–ão: porque a UE é um bom negócio para eles. Esperemos que sim, que seja, porque só assim a UE pode durar. Mas também não é um bom negócio para o sul? Por alguma razão, os políticos e os eleitorados do sul aguentaram as condições da assistência financeira em 2011. Se fosse melhor estar fora do euro, teriam naturalmente saído. Não saíram. Cortaram salários e pensões para lá ficar, e o que recuperaram entretanto, recuperaram-no por esse esforço, mas também pelo enquadramento europeu, a começar pelas políticas do BCE.

A UE é um bom negócio para todos, porque a circulação de mercadorias, capitais e pessoas, que a UE viabiliza e regula, é o único meio conhecido de assegurar a prosperidade do maior número de países – na Europa, como no resto do mundo. Estados diferentes, com interesses diferentes, têm este interesse em comum: mercados abertos. Para manter as instituições que, no continente, zelam por essa abertura, o norte da Europa tem tolerado as liberalidades do BCE, e o sul tem tentado equilibrar os orçamentos.

A UE não pode ser mais do que é, mas também não pode ser menos. Não é o melhor dos mundos, mas há mundos piores. Neste momento, é uma das poucas coisas que resta do mundo tal como ele era há vinte anos. Só porque não tem alternativa, não quer dizer que dure. Por essa razão, talvez não seja demais pedir que nos poupem aos anúncios do seu fim. Bem sei que, a semana passada, esse niilismo apocalíptico deu cinco minutos de fama a dois políticos de países pequenos. Mas já vivemos com demasiadas dúvidas e incógnitas. Não brinquem connosco. Não agora.

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