O mundo começou a desglobalizar antes da pandemia covid-19. A falência de bancos e de Estados na sequência da crise financeira internacional pôs em causa a benignidade da livre circulação de capitais. A crise dos refugiados fez ressurgir a questão do controlo de fronteiras na UE. Mas os momentos mais notáveis da desglobalização e do regresso do Estado-Nação ocorreram em 2016. Num referendo, o Reino Unido decidiu abandonar a UE. No mesmo ano, Donald Trump foi eleito presidente dos EUA, com um slogan dos anos 1930, America First, e elegeu entre as prioridades do seu mandato o prolongamento do muro na fronteira com o México e a guerra comercial com a China. Hoje não é possível negar que esses dois acontecimentos traduziram uma vontade latente em largas franjas da população: fechar as fronteiras.

A revolução das tecnologias de informação e comunicação (TIC) nos anos 1990, o fim da União Soviética e a entrada da China no comércio internacional deram um novo ímpeto à globalização. As TIC permitiram a reorganização da produção das grandes multinacionais a nível global. Estas, na procura de eficiência, optaram por localizar as suas fábricas nos países onde os custos de produção eram mais baixos. O extraordinário crescimento da China e de outros países asiáticos, ou dos países do Leste Europeu, é indissociável da globalização: o acesso a mercados externos, o investimento directo estrangeiro, o acesso a conhecimento e novas tecnologias, o acesso aos mercados financeiros internacionais.

Nos países mais desenvolvidos, a globalização resultou no acesso a bens mais baratos – uma das causas das baixas taxas de inflação nas últimas décadas. Também houve efeitos negativos. A deslocalização de fábricas gerou desemprego e contribuiu para o aumento das desigualdades salariais entre os trabalhadores mais qualificados e os trabalhadores menos qualificados. Estes grupos de “perdedores da globalização” constituíram a base de apoio do movimento Take back control do Brexit e do America First de Trump.

Antes da pandemia, as instituições internacionais já identificavam a guerra comercial entre os EUA e a China como um dos principais factores de risco para a economia mundial.

Qual é a razão para a guerra comercial entre os EUA e a China?

Durante muito tempo, o grosso das elites norte-americanas acreditaram numa ideia antiga, a ideia do comércio doce apresentada por Montesquieu no século XVIII no seu Esprit des lois: “O comércio civiliza e adoça os modos bárbaros”. A animosidade entre países seria submergida pelos interesses comerciais. Muitos acreditavam que o comércio tornaria a China cada vez mais liberal e, no fim da história, nasceria uma democracia. Essa crença revelou-se uma grande ilusão.

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Até à crise financeira internacional, a China e a Ásia eram parceiros comerciais privilegiados dos EUA. E continuam a sê-lo. O Pacífico é a região económica mais dinâmica do mundo. Os EUA e as principais economias europeias, como a Alemanha, não se sentiram ameaçados pela concorrência da China. Os países que mais sofreram com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, foram os de rendimento médio, como Portugal, especializados em produtos de baixa e média tecnologia.

A China é o maior exportador mundial e, em paridade de poder de compra, é a maior economia mundial desde 2018, representando cerca de 20% do PIB mundial. Por outro lado, a China ameaça hoje a liderança tecnológica dos EUA e da Europa. Está na linha da frente em áreas tecnológicas fundamentais como o 5G, inteligência artificial, automóveis eléctricos, centrais nucleares, energia renováveis ou comboios de alta velocidade.

Hoje, os EUA e as principais economias europeias sentem a sua posição dominante ameaçada.

Numa altura em que é do interesse de todos mais cooperação internacional, os líderes políticos têm reagido à pandemia covid-19 com demasiada emoção, acirrando os conflitos internacionais. Recuperando o espírito do Tratado de Versalhes, destacados políticos americanos, republicanos e democratas, responsabilizam a China pelos custos da pandemia covid-19 e exigem indemnizações. A senadora republicana Marsha Blackburn propôs que os EUA não pagassem os juros da dívida americana detida pela China.

Seria de esperar que o confinamento e o fecho das fronteiras tornassem evidente aos olhos de todos as vantagens da globalização. Afinal de contas, o mundo manteve-se a funcionar graças aos computadores e telemóveis, ligados em redes internacionais. E o abastecimento de bens essenciais, incluindo a área da saúde, foi possível com o recurso ao comércio internacional.

Numa pandemia, isto é, uma epidemia que atinge todos os continentes, é do interesse de todos a cooperação entre os países: na contenção do contágio, na partilha dos resultados da investigação sobre o vírus e a vacina, na partilha de material médico, equipamentos de protecção individual e de bens essenciais.

A cooperação internacional não impede os EUA e a UE de preservarem o controlo sobre alguns sectores e infraestruturas estratégicos, como defendeu a presidente da Comissão Europeia Ursula Von Der Leyen. Uma estratégia europeia que redefina as condições de acesso à contratação pública de bens e serviços e que promova a ‘soberania’ de sectores como o digital, as comunicações, o farmacêutico ou a biotecnologia são essenciais para a competitividade e resiliência da UE. As empresas multinacionais podem vir a rever as suas redes de abastecimento, tornando-as mais próximas, e dando mais importância à segurança do que à eficiência.

Estas mudanças serão graduais. A reconfiguração das cadeias de fornecimento requer a construção de novas fábricas em novas geografias. O sistema de interdependências existente não pode ser reconstruído subitamente. Como já estamos a assistir, as restrições impostas às importações por um país levam a restrições impostas por outros países. Os efeitos deste processo de retaliações não são difíceis de prever. A desglobalização tem custos. Menos diversidade de bens e bens mais caros.

Os riscos políticos da desglobalização são também elevados. A primeira grande desglobalização ocorreu com a I Guerra Mundial, pondo fim à globalização comercial e financeira dominada pela Inglaterra desde a Revolução Industrial. Uma das causas daquele conflito foi a ascensão da Alemanha e a ameaça que representava para os interesses da Inglaterra. Hoje, a China ameaça o domínio e os interesses dos Estados Unidos e da UE. Vislumbra-se um agravamento dos conflitos comerciais e um retrocesso no processo de globalização.

Não temos de amar a China, basta um casamento de conveniência. No espírito de Montesquieu, espero que os interesses prevaleçam sobre as paixões e que a globalização adoce os espíritos nacionalistas.