Cada dia é uma desculpa. Estou cansado. Você precisa deitar cedo. Tenho que terminar de mandar uns e-mails do trabalho. Você ainda nem terminou suas tarefas da escola. Estou conversando com os adultos. Vá brincar com as outras crianças. Agora não dá tempo. Outra hora a gente brinca.

Não, realmente não é fácil. Os dias são corridos, os compromissos nos engolem e raramente há tempo de sobra. Quase nunca. Mas existe, sim, uma certa “zona de conforto” na falta de tempo. Algo como nos tornarmos praticamente inatingíveis, de tão indisponíveis que costumamos estar.

Mas acontece que há algumas pessoas que desejam profundamente a nossa companhia. Pessoas pequeninas que desejam, mais do que tudo, a nossa atenção. E nem precisa ser por muito tempo. Só precisa ser com 100% de entrega nos minutos em que durar. Sem interrupções para mexer no telefone, sem dividir aqueles raros instantes com algum tipo de concorrência.

As crianças querem brincar. Na maioria das vezes, de qualquer coisa que a gente proponha. Pode ser de pirata, de cozinheiro, de salão de beleza. Pode ser com bola, com lápis coloridos ou só com a voz. Pode ser uma corrida até a porta do prédio, pode ser para se fingir de estátua. Não importa. O que eles querem é a partilha, a presença e a entrega. Coisas raras.

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Nos esquecemos, muitas vezes, de que a brincadeira pode ser até mesmo o nosso assunto sério. “Vamos ao supermercado? E você me ajuda a encontrar tudo o que há nessa lista em menos de 15 minutos?”. Pronto, a brincadeira já está construída. É impressionante como eles precisam de pouco. Só querem estar envolvidos em vez de se sentirem marginalizados.

Nada é mais vulnerável do que uma criança. Nada é mais vulnerável a um “não” do que uma criança. O não sai facilmente demais pelas nossas bocas. Podemos brincar? Não, porque eu estou preparando o jantar. Mas poderia ser “Sim! Venha para a cozinha comigo. Agora pegue essas azeitonas, esses tomates, esses palitos de cenoura e coloque-os do jeito mais bonito que conseguir nesse prato. Pode até fazer uma carinha com eles.” O sim costuma ser mais fácil do que o não. Mas o não atropela o sim.

O fato é que eles crescem rápido demais. E que a nossa presença precisa ser hoje. O que não construímos hoje, não construiremos amanhã. Cada negativa nossa vem para ficar. E, quando piscamos os olhos, eles já são pré-adolescentes revirando os olhos para nossas atrasadas propostas de brincadeiras. A culpa não é deles. A culpa é toda nossa e da nossa persistente falta de tempo, de entrega e de paciência.