O Livre declarou que Junho é “mundialmente reconhecido” como o mês do “orgulho LGBT”. Desfiles no Togo e na Somália desceram com estrépito as avenidas dos nossos pensamentos. E, para educação dos simples, que agradeço penhoradamente, o Livre esclareceu que esta data ficou estabelecida por referência à revolta de Stonewall, em Junho de 1969. Com este pretexto, o Livre quer pressionar o governo português a insistir na aprovação de uma “directiva anti-discriminação”, apresentada em 2008 pela Comissão Europeia, que em boa hora ficou estacionada no Conselho Europeu, órgão representativo dos governos nacionais. Quer também comprometer o governo e a Assembleia da República a aprovar uma lei portuguesa que “proíba a discriminação”, de acordo com o papel que apresentou na Assembleia Municipal de Lisboa.

A revolta de Stonewall é uma data respeitável, e merece ser comemorada porque foi espontânea e necessária. Chamou-se “revolta de Stonewall” a um conjunto de motins violentos que aconteceram em Nova York, na madrugada do dia 28 de Junho de 1969, para responder a uma carga da polícia. Essa primeira reacção, no bar Stonewall Inn, pertencente à Cosa Nostra americana, contagiou protestos nas noites seguintes e alargou-se a todo o bairro de Greenwich Village. Em poucas semanas, os moradores organizaram-se em grupos e conseguiram estabelecer lugares que os homossexuais pudessem frequentar sem correrem riscos de ser presos ou apanhar pancada.

Toda a revolta aconteceu sem o estímulo moral ou a supervisão dos partidos, é importante destacar. Isto evita as habituais confusões entre a orientação sexual das pessoas e a sua orientação política. Ao contrário do que nos querem convencer, os dois capítulos da existência são autónomos, não se determinam mutuamente, nem obedecem às regras que a extrema-esquerda insinua ou impõe. Não foi a “comunidade LGBT” quem, há meia dúzia de dias, expulsou ou quis expulsar de um desfile alguns militantes da Iniciativa Liberal. Foi a extrema-esquerda. A mesma extrema-esquerda que organiza os desfiles e se faz passar por representante dessa “comunidade”. De caminho, era bom que a Iniciativa Liberal se pusesse esperta e começasse a compreender os sarilhos onde se mete irresponsavelmente.

Com a sua força e autenticidade, a revolta de Stonewall marca o inicio do movimento de libertação gay pela conquista dos direitos civis, que eram importantes e necessários. Os homossexuais continuavam a ser considerados cidadãos diferentes dos outros, inferiores aos outros, existia uma pressão para os “corrigir” e mantinha-se uma discriminação na própria lei. Mas estávamos em 1969; e, de então para cá, as circunstâncias mudaram. Hoje os cidadãos são tratados como iguais perante a lei na maior parte dos países democráticos, incluindo Portugal. Fez-se a mais elementar justiça, a sociedade a pouco e pouco aceitou, é tudo o que se pode pedir ao poder político. E, logo aqui, temos um ponto que nos separa da esquerda. O cidadão, para efeitos de governo, deve ser considerado livre de toda a especificidade e, portanto, também livre de toda a menorização discricionária. A esquerda, como veremos, encara as coisas de outra maneira.

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O que não se pode reconhecer é esta abstracção indefinível a que chamam “comunidade LGBT”, uma vez que ela neste mundo não existe. Quando se fala numa “comunidade” pensa-se num conjunto de pessoas que se associaram e criaram laços entre si, com base em alguma coisa que encontraram em comum. O que existe são pessoas, indivíduos dotados de vontade e livre arbítrio, que se associam segundo os seus próprios critérios. Dispensam os critérios da extrema-esquerda, ou os critérios com que a extrema-esquerda constrói a sua retórica política.

A insistência neste assunto, aos dias de hoje, é uma instrumentalização das pessoas e uma segmentação artificial da sociedade que deixa a esquerda em 1969. Ninguém se admira com o atraso da esquerda nem com o atraso que a esquerda provoca, mas os “activistas” que a esquerda usa como altifalante já podiam vir andando em direcção ao tempo presente. Por muito que lhes custe a preencher o vácuo em que arrastam a madraçaria, de “causa” em “causa”, de cliché em cliché já passaram 53 anos. Mais depressa actualizam os telemóveis do que os modos de vida.

Sobretudo não se vê aqui, quando insistem hoje neste assunto, uma tentativa de criar um movimento de concórdia, ou sequer de boa convivência. O que se vê é uma tentativa de apontar as diferenças, de as amplificar, de as tornar grotescas. A extrema-esquerda esgota-se em recursos para separar as pessoas, em grupos cada vez mais pequenos e artificiais, descobrindo e destacando as incompatibilidades. É pela mão da extrema-esquerda que nos chega a versão estereotipada. Como se os homossexuais não tivessem o direito a detestar-se entre si, ou a dedicarem-se uma fervorosa indiferença. Como se os homossexuais não pudessem criar laços, dependências, ou afinidades com pessoas a quem esta segmentação é irremediavelmente estranha. Como se os heterossexuais fossem ortopedistas, cinéfilos, ou misantropos, ou até tudo isto ao mesmo tempo. Mas aos homossexuais só fosse permitido ser isso mesmo, homossexuais a vida inteira. E, claro, se comportassem de acordo com as regras que a extrema-esquerda determinou para eles: saltos altos, biquíni em couro, maquilhagem de cabaret, samba eufórico na caixa aberta da camioneta, o cliché completo.

O que até vai contra o espírito inicial do movimento gay. Os primeiros grupos tentavam provar que as diferenças não eram inconciliáveis, que os homossexuais podiam ser assimilados pela sociedade, era tudo o que eles queriam. E repudiavam uma abordagem confrontacional. Como hoje repudiam, todos os que têm juízo, e são a larguíssima maioria. As pessoas querem fazer a sua vida sossegadamente, integradas no corpo de referências daqueles que vivem à sua volta. Por isso os homossexuais se quiseram casar, uma instituição fortíssima no ordenamento da nossa sociedade, e uma referência conservadora das mais antigas e fundacionais.

Por fim, o Livre pede-nos para interceder a favor de um diploma europeu cujo texto não conhecemos e o Livre não mostrou. Uma ideia sem pés nem cabeça. E pede-nos para exigir uma legislação antidiscriminação que já existe; em Portugal, os homossexuais podem casar-se, formar famílias, adoptar ou ter as suas próprias crianças. Pede-se deles que se comportem como todas as famílias: manterem-se unidos, apoiar e ensinar as crianças, protegê-las da doença, consolarem-se uns aos outros, acompanhar os velhos e dar-lhes conforto. Para todos os efeitos, os cidadãos portugueses são iguais perante a lei. Como devem ser.