Uma parte da esquerda portuguesa transformou-se na porta-voz de Rousseff e do PT em Portugal. Tal como os seus camaradas brasileiros, chamam à impugnação “golpe” e negam qualquer “justificação jurídica”. Deixando de parte a desonestidade intelectual e política desses argumentos, convém tentar entender a natureza do processo de impugnação. O processo começa com uma base legal e termina com um momento quase jurídico, mas pelo meio é inteiramente politico. Foi assim com o afastamento de Collor de Melo e também foi assim com todas as tentativas do PT para afastar Fernando Henrique Cardoso.

Neste caso, as chamadas “pedaladas fiscais” constituem o fundamento legal da impugnação. Simplificando, as políticas orçamentais de Rousseff violaram a Constituição brasileira. De resto, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou, mais de uma vez, a favor da constitucionalidade do processo de impugnação. Se para os defensores portugueses do PT, as posições do Tribunal Constitucional em Portugal definem a legalidade das decisões políticas, por que razão não reconhecem o mesmo estatuto ao Supremo Tribunal Federal no Brasil? O processo de impugnação termina com uma espécie de julgamento constitucional no Senado, presidido pelo Presidente do STF. Mas ainda não chegámos a esse momento. Estamos na fase da política.

O argumento do “golpe” reduz a impugnação a um processo puramente jurídico e nega a legitimidade da dimensão política. Ora, o plano político é inteiramente legítimo. E o PT sabe-o bem. Tentaram impugnar Henrique Cardoso várias vezes e só não conseguiram porque não tinham uma maioria no Congresso. Dilma está quase a perder o seu mandato porque não foi capaz de manter a maioria parlamentar. Não é a oposição que está a liderar o processo de impugnação. São os antigos aliados do PT. Aliás a tentativa de Lula para se tornar ministro foi o reconhecimento da incapacidade política de Dilma para manter uma maioria no Congresso. E o fracasso de Lula para reconstruir a maioria mostra o isolamento do PT e a queda do seu líder histórico.

Voltando às comparações com Portugal, numa perspectiva política – inteiramente legítima – a impugnação deve ser entendida com uma moção de censura. Sem maioria no Congresso, um Presidente e o seu governo passam a estar em perigo. Nem a legitimidade eleitoral do Presidente serve de proteção, um pouco à semelhança do que aconteceu em Portugal em Outubro do ano passado. Passos Coelho ganhou as eleições, mas não conseguiu governar porque não tinha maioria parlamentar. No essencial, é o que se passa no Brasil. Sem maioria no Congresso, Dilma muito dificilmente continuará como Presidente.

O fim da maioria de apoio a Dilma leva-nos a uma questão central para o futuro da política brasileira: a dificuldade em construir maiorias num sistema partidário demasiado fragmentado. A necessidade de vários partidos para se formar uma maioria no Congresso explica muita da corrupção política, como se viu com o mensalão durante a presidência de Lula. A reforma do sistema eleitoral para facilitar maiorias políticas seria uma das medidas mais eficazes para se combater a corrupção, tornando simultaneamente a impugnação muito mais difícil.

Há ainda outro ponto importante a sublinhar. O factor mais relevante de tudo isto não é a impugnação, mas sim o sistema de corrupção sistemático organizado pelas lideranças do PT. Não estamos perante casos de corrupção isolados. Foi um sistema criado quando Lula era Presidente e visava ajudar a perpetuar o poder do PT, facilitando o financiamento das campanhas eleitorais. O controlo do poder económico seria fundamental para concretiza essa estratégia. A corrupção investigada pelo Lava Jato resultou de uma aliança entre o poder político e o poder económico. De um lado, o PT (e os seus aliados políticos) e do outro a maior empresa brasileira, a Petrobrás, as grandes construtoras e os bancos públicos. O capitalismo de Estado construído por Lula pretendia manter o PT no poder permanentemente. Esse foi o verdadeiro golpe que aconteceu no Brasil nos últimos anos. Foi isso que as autoridades judiciais desmascararam. A democracia brasileira deve estar agradecida. Tal como todos os democratas em Portugal.

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