Não há receitas simples no amor e, muito menos, nas famílias. É isto que o Papa vem sublinhar na sua Exortação Apostólica, depois de 2 anos de escuta activa e perguntas incessantes sobre a vida real, das pessoas reais. No ano em que faz 80 anos, o Papa Francisco sabe que não tem a vida toda pela frente para reformular na Igreja tudo aquilo que sente como mais urgente e, por isso, estabelece prioridades e dá linhas orientadoras. Muito tem feito ele, em tão poucos anos de Pontificado. Não tenho dúvidas nenhumas de que crentes e não crentes lhe reconhecem esta admirável capacidade de fazer tanto, em tão pouco tempo. Atravessa fisica e espiritualmente realidades complexas e percorre pelo seu pé caminhos extraordinariamente difíceis. Faz tudo com aparente facilidade e chega a todas as pessoas e lugares sem exprimir cansaços.

Já o vi numa celebração em Roma, a passar mesmo ao meu lado, muito vergado ao peso do sofrimento pelas mortes de inocentes, pelas dores do mundo, depois dos massacres em África e dos atentados de Paris, mas também vejo a alegria que contagia em todas as viagens que faz. Admiro muito, muitíssimo, a sua coragem e a sua liberdade interior. Tenho-o como grande exemplo de humanidade, e é essa mesma humanidade que reconheço nas linhas e entrelinhas dos fragmentos que já li da sua Amoris Laetitia.

Tal como o próprio Papa adverte, a Exortação sobre a Alegria do Amor não é para ser lida de uma assentada e, muito menos, interiorizada de forma apressada. Pelo contrário, Francisco pede uma leitura demorada, paciente, por etapas, que permita aprofundar as questões essenciais de cada um dos 9 capítulos. E dá uma chave de leitura muito importante ao esclarecer de forma exclamativa que não se trata de uma doutrina do matrimónio! O que está em jogo é o amor, sublinha o Papa.

Na impossibilidade de ler e interpretar sozinha um documento desta envergadura, com 300 parágrafos, pedi ajuda a especialistas na matéria e tive acesso em primeira mão à reflexão que Antonio Spadaro, jesuíta italiano, escritor e teólogo, director da Civiltà Cattolica, escreveu. Na próxima sexta-feira a Editoral Apostolado da Oração, Editora dos jesuítas, lança a edição portuguesa com este mesmo texto de introdução, em que Spadaro explica a estrutura e o significado do documento do Papa. Vale a pena ler Antonio Spadaro antes de ler o próprio Papa, pois ele dá uma ajuda preciosa no enquadramento dos temas.

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Francisco gosta particularmente da letra do poema Te Quiero, do uruguaio Mario Benedetti, e refere-a porque lhe interessa essa gramática, mas também a matemática que existe numa relação de amor, em que dois enamorados são sempre muito mais que dois. Numa família, com filhos ou sem filhos, convencional ou refeita, monoparental ou outra, o que conta é o amor e a caridade. “A caridade cobre uma multidão de pecados” e não há limites para a compaixão e a misericórdia. Francisco convida a essa mesma caridade, abrindo caminhos para todos. Se não é possível mudar uma situação de irregularidade perante a Igreja, é sempre possível percorrer o caminho do amor misericordioso, ao encontro dos outros. A fecundidade também passa por aí, pela dimensão social de cada família, pela maneira como se fecha ou abre aos outros.

É interessante a maneira como o Papa Francisco fala da caridade, aliás, pois assume que pode ser exercida numa lógica gradual de ‘aumento sucessivo’. Cada dia mais capazes de dar e de nos darmos. “Temos que deixar de pretender que as relações interpessoais sejam uma perfeição”. Ou seja, temos a mania de esperar que os outros sejam perfeitos (mesmo sabendo que nós próprios estamos cobertos de imperfeições), e passamos a vida a anotar mental e emocionalmente as incoerências dos que vivem connosco ou ao nosso lado, mas esquecemos-nos de que podemos crescer juntos na capacidade de amar. E na inteligência de nos aceitarmos mutuamente, apesar das imperfeições de cada um.

As famílias não vêm feitas, as relações nunca estão acabadas e o amor é uma construção permanente. O Papa diz isto mesmo, por palavras mais sábias. Mesmo quando os filhos estão crescidos e os pais são velhos, a família permanece em construção. Todas as relações habitam uma espécie de estaleiro perpétuo e, por isso, aquilo de dizemos ou fazemos hoje pode destruir muito do que conseguimos edificar até ontem. Uma palavra, um gesto, uma traição podem fazer desabar um edifício de confiança. O Papa não desperdiça tempo nem linhas a explicar como podemos ser demolidores ou resgatadores do amor em família, mas para bom entendedor, as suas palavras bastam. Até porque ele sabe que cada caso é um caso, e cabe a cada um procurar e encontrar os meios de evoluir numa lógica ‘de bem em melhor’. Sem imposições de fora, a partir de dentro, do ‘coeur du coeur’.

Concreto e sempre realista, o Papa Francisco fala da situação actual das famílias ‘com os pés na terra’, tendo em conta realidades de grande fragilidade e complexidade como a violência sobre as mulheres e os abusos das crianças, para citar apenas dois exemplos universalmente gritantes. “A família não é um ideal abstracto, mas uma tarefa artesanal”. Uma obra colossal. E é também um lugar de confronto entre poderes dominadores onde existem traições e grandes solidões. Por isto mesmo, a Exortação Amoris Laetitia é um apelo repetido e infatigável ao amor e à ternura. Não é uma doutrina fria, sem vida, descolada da realidade-real, escrita para determinar como devem funcionar as famílias, insiste o Papa. Ainda bem.

Quase todos temos desejos de felicidade e fidelidade; muitos tememos a solidão e penso que a esmagadora maioria sente ou já sentiu necessidade de protecção. Neste sentido, o Papa descreve o amor humano em termos absolutamente concretos, como diz Antonio Spadaro. E escreve 300 parágrafos que poderiam ser lidos como fragmentos de um discurso amoroso que não deixa nada de fora, sejam as emoções positivas e negativas entre o casal, ou a dimensão erótica do amor. Olhando à longevidade das pessoas e a relações que hoje em dia podem chegar a atravessar 4, 5 ou 6 décadas, o Papa Francisco como que tece um tecido novo para cobrir a nudez que fica depois de esgotada a atracção amorosa, estendendo esse manto aos que porventura já não sentem o mesmo desejo sexual, o mesmo deleite físico, mas continuam a ter um enorme desejo de intimidade.

“O aspecto físico altera-se e a atracção amorosa não desaparece, mas muda; o desejo sexual, com tempo, pode transformar-se em desejo de intimidade e cumplicidade. Não podemos prometer a nós próprios, e um ao outro, que teremos os mesmos sentimentos para toda a vida, mas podemos certamente ter um projecto comum estável, comprometermo-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, vivendo sempre uma rica intimidade”.

Envelhecer e ‘gastar-se juntos’ é uma das muitas imagens felizes que o Papa Francisco usa para ilustrar o seu pensamento sobre a Alegria do Amor, sobretudo porque reflecte o amor de Deus por cada um de nós. Um Deus que atravessa a vida connosco, ao nosso lado, com quem podemos ter uma relação de fidelidade e constante novidade. O Deus das surpresas, de quem outros falam.

A Exortação Amoris Laetitia criou grandes expectativas nos recasados e naqueles que de alguma forma se sentem em situação de fragilidade ou irregularidade perante a Igreja. A estes e estas, bem como àqueles que os acompanham, o Papa fala mais uma vez a partir da experiência concreta do quotidiano das famílias. Usa uma linguagem natural, sem rodeios ou artificialismos, e diz a todos que a palavra-chave é ‘discernimento’. Um discernimento que remete para a consciência e a historicidade católicas, numa dinâmica de constante actualização e adaptação à realidade. Evitando a todo o custo o perigo da abstracção, das teorias excessivas e dos idealismos, mas também abstendo-nos da inclinação humana à condenação e exclusão. Como Jesus agiria, se estivesse entre nós.

As palavras de Francisco têm um impacto enorme e por isso cito-o, citando também Spadaro, nos itálicos com que pretende reforçar as ideias do Papa:

“Por muito tempo convencemos-nos de que só por insistirmos em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, tivessemos já oferecido suficiente apoio às famílias (…) seria uma ilusão pensar que as pessoas se podem sentir confirmadas e corroboradas nos valores só porque se insiste em pregar a doutrina, sem dar o necessário espaço à consciência dos fiéis, que tantas vezes correspondem o melhor possível ao Evangelho, no meio dos seus limites, e podem levar por diante o seu discernimento pessoal perante situações em que todos os esquemas soçobram. Somos chamados a formar consciências, não a pretender substitui-las.”

Parágrafos como este impõem algum silêncio interior. Obrigam a parar para reflectir antes de agir. Isto, porque “agimos muitas vezes numa atitude defensiva e desperdiçamos energias pastorais multiplicando as invectivas ao mundo decadente, com escassa capacidade de propostas para indicar caminhos de felicidade”. O Papa volta uma e outra vez ao exemplo de Jesus, às propostas de Jesus, à proximidade compassiva de Jesus. E recorda a maneira como Jesus falou à samaritana, à mulher adúltera e a todos os que a queriam condenar. Reforça aquilo que considera uma Pastoral positiva e acolhedora, porque “o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar de misericórdia de Deus”. A Eucaristia, também não é “um prémio para os perfeitos, mas um generoso remédio para os débeis” e todos os que se sentem mais frágeis.

Impressiona muito a capacidade de perdoar e acolher de Jesus, a sua misericórdia e a sua maneira de interagir e resgatar sem condenar, a sua abertura a uma melhoria gradual no outro, sem lhe impôr a conversão imediata. Dar tempo ao tempo, dando também a verdade e a caridade como ferramentas para o discernimento pessoal, parece ser o caminho mais sensato para quem sabe que não pode transformar uma situação irregular, em regular. A quem de alguma forma se sente nesta situação, o Papa responde com humildade e, mais uma vez, realismo, reconhecendo que embora haja fiéis e padres que “preferem uma pastoral mais rígida, que não dá espaço a confusão alguma” ele está convencido de que “Jesus quer uma Igreja atenta ao Bem que o Espírito espalha no meio da fragilidade”. Francisco não se importa nem tem medo de sujar os pés com a lama deste caminho. Aparentemente retoma a parábola do trigo e o joio, reforçando o pedido “para evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes”.

Se fosse possível resumir em 3 palavras o essencial de Amoris Laetitia, os conceitos-chave seriam: discernimento, consciência e proximidade compassiva. Conhecendo o Papa Francisco como já conhecemos, faz sentido que assim seja pois para ele tudo é possível menos deixar alguém de fora da Igreja. Para Francisco não há portas fechadas, nem horário de atendimento, nem periferias fora do alcance. Depois de milhares de horas passadas a escutar pessoas dentro e fora dos confessionários, antes e depois de ser Papa, Francisco sabe que num tempo de vida tudo é possível com a graça e a misericórdia de Deus. Daí, a urgência deste seu imperativo espiritual que o fez primeiro escutar, e depois escrever, para que mais pessoas abram os braços e o coração.