Dino D´Santiago — não o conheço mas parece-me uma pessoa afável, simpática –, veio propor a mudança do nosso hino. Porque o hino é «bélico, incentiva à guerra» e o cantor discorda da transmissão desses valores aos filhos e às gerações futuras.

Devo dizer, antes de continuar o texto, que a minha posição em relação ao radicalismo e puritanismo woke é clara, inequívoca e já aqui, no Observador, a manifestei. E mesmo muito antes, em 2013, quando escrevi Camas Politicamente Incorrectas da Sexualidade Contemporânea, como em crónicas posteriormente publicadas.

No Observador encontrei o debate regular de temas propostos pela agenda woke que não vejo suficientemente discutidos noutros media, com a salvaguarda da história, como o faz João Pedro Marques, ou com a especialização de Patrícia Fernandes, ou num sentido mais amplo, com a qualidade da análise, e muitas vezes o humor, de Paulo Tunhas, autores de quem sou assídua leitora.

Devo dizer também que não conheço qualquer outra posição política e cultural de Dino D´Santiago, por isso não sei se, ou quanto, da agenda woke defende. Na verdade, associei este assunto às surpreendentes manifestações e concessões de Álvaro Beleza àquela agenda a propósito do Padrão dos Descobrimentos. E não recuso a possibilidade do meu enviesamento.

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Dino D´Santiago propôs uma discussão à qual adiro. Não é uma proposta nova nem uma discussão nova. Vale a pena consultar os arquivos da RTP e ouvir no Caso do Dia, a proposta de Alçada Baptista, aliás com o mesmo argumento de Dino D´Santiago, e o comentário daqueles que fazem parte da nossa história política e cultural, para além do próprio Alçada Baptista, Jorge Sampaio, Jorge Rosas, entre outros.

O nosso hino não é o mais bonito do mundo. E as letras mudam-se — já substituímos «bretões» por «canhões»; já deixámos cair duas estrofes de A Portuguesa. E não me oporia a uma renovação do hino ou da bandeira, caso se justificasse, e nas novas produções se congregasse o sentimento popular que estes com mais de cem anos de existência convocaram quando surgiram. Mas nunca para reescrevermos a história. Muito menos como acto penitencial. A anulação retroactiva é um mecanismo de defesa desadequado para tratarmos o nosso passado colectivo. De igual forma, a expiação a que o acto penitencial convida.

O nosso hino, A Portuguesa, uma marcha construída em simetria com A Marselhesa, surgiu como resposta ao ultimato inglês — na sequência do Mapa Cor-de-Rosa onde se ilustrava a pretensão portuguesa de unir Angola a Moçambique e por isso se marchava contra os «bretões», actualizados em posteriores «canhões».

Com os brios nacionalistas pelas ruas da amargura, isto é, humilhados pelos ingleses, e em discordância com as cedências de Dom Carlos I, que fazer?

A reparação surgiria sob a égide de Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça, autores, respectivamente, da música e letra de A Portuguesa. De marcha de vocação patriótica, rapidamente popularizada, a hino republicano foi um ai. Em 1891, os revolucionários republicanos tê-la-ão entoado no falhado Golpe do Porto, com o patrocínio da banda de Infantaria 18 que os acompanharia, o que conduziu à sua proibição. Inútil proibição. A marcha estava difundida.

A 5 de Outubro esta marcha fez-se ouvir repetidamente pela Avenida da Liberdade abaixo. Após a implantação da República em 1910, A Portuguesa foi adoptada como hino nacional em 1911, logo na primeira sessão da Constituinte.

Mas afinal o que tem o hino de perverso? Como país com as fronteiras desde muito cedo definidas e com uma identidade consolidada por séculos, não somos muito permeáveis a nacionalismos. Estamos confortavelmente sentados na nossa portugalidade até na diáspora. Para o bem e para o mal. O nacionalismo, portanto, não será a perversidade.

Então qual é o problema do hino? Sermos «heróis do mar»? Na verdade, não o fomos? Atravessar o mar desconhecido numa casca de nós é tão duro como atravessar o céu numa cápsula como o fizeram os astronautas nos anos 60. A coragem é uma virtude. Todo o conhecimento que decorreu daquele período da nossa história transcende largamente qualquer revisionismo colonialista e esclavagista que se lhe impregne, da ciência náutica à astronomia; de João de Barros à cartografia com passagem por Camões e pela culinária, ou pelo famoso chá das cinco que não se serve depois das quatro e foi para Inglaterra no dote de Catarina depois de viajar o mundo. Ao «nobre povo» acredito que ninguém objecte: somos criaturas aspiracionais, podemos, devemos ser melhores, a nobreza de actos passados deve ser um referente futuro tanto quanto os erros são adversativos. «Nação valente» é um facto: entalados entre o mar e Espanha temos resistido a tudo, até às nossas piores decisões políticas ou piores governações. «Imortal», bem, parece-me um saudável exagero, mas já cá andamos desde 1143. «Levantar o esplendor de Portugal» é desejável sempre como hoje, nesta decadência em que vivemos, com o nosso PIB, salário médio, condições de vida e classe governante. Ou melhor, é necessário. As «brumas da memória que nos trazem a voz dos nossos egrégios avós», oferecem-nos uma ideia de continuidade. De um pequeno condado às fronteiras de hoje que se estendem para lá dos Pirenéus com assento em Bruxelas. Se nos «levará ou não à vitória», não sei, mas a esperança é um bom condutor. «Às armas» será literalmente bélico, o que in extremis não é mau: quando ameaçados com a aniquilação devemos combater. Mas é também um incitamento a lutar por aquilo em que se acredita seja em que cenário for, «terra ou mar», contra o que for, «bretões ou canhões», ou qualquer outra coisa, em nome daquilo em que se acredita. Fico-me por aqui, a segunda parte do hino, ninguém canta.

Para além da desdramatização lúdica, o facto: como republicana, este hino, para mim, tem significado. Por junto com a bandeira que, concedo, não é de grande beleza mas é a minha. Estes símbolos, como outros, fazem parte da nossa história que não é um monólito, é um movimento de pessoas, territórios e pensamento que nenhuma fronteira contém.

A autora escreve segundo a antiga ortografia