Falemos então de empresas offshore. As opiniões dividem-se: os absolutamente contra, que as consideram um mal absoluto, paradigma do neo-capitalismo triunfante; e os absolutamente a favor, que vêem nelas um instrumento fundamental da economia de mercado e do sistema financeiro contemporâneo.

Que perfeito maniqueísmo. Parecem-me ambas erradas, como sempre quando a opinião se extrema, esquecendo a sensata expressão “virtus in medium est”, originária da filosofia escolástica medieval. Não têm razão os que proclamam a ilegalidade das offshore, como não a tem quem as considera indispensáveis ao bom funcionamento das economias. Poderiam talvez aproximar-se ambas da razão se concordassem tratar-se de um mal necessário, por isso carente de supervisão e regulação, com regras estritas de utilização e uma total transparência.

O que são off-shores, afinal?

(…)os offshores (…) são sociedades em paraísos fiscais, países que decidiram atrair investimento através da atribuição de benefícios às empresas que queiram ter a sua sede nesses territórios. (…) cada território soberano pode estabelecer os seus impostos, (o) que Portugal não só reconhece como pratica (offshore da Madeira). (…) fazer uso dos mecanismos legais que permitem que sejamos menos penalizados pelo Estado é um direito que nos assiste a todos. Não é imoral nem ilegal.” (Brito Rebelo, “Offshore”).

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Há pois 3 peças fundamentais: os países que atribuem benefícios às empresas e as empresas atraídas por esses benefícios. Aos primeiros usa chamar-se paraísos fiscais, as segundas são as empresas que neles se instalam. E há as sociedades que ajudam a criar essas empresas e as blindam contra o risco de pagar impostos (para simplificar). Isto é, Panamá, Mossak Fonseca, os clientes desta. E há ainda contas offshore que qualquer pessoa pode abrir, num procedimento em tudo semelhante ao da abertura de uma conta bancária em Portugal.
Pergunta-se então: os países que assim agem, agem ilegalmente? Não necessariamente. O seu objectivo é atrair empresas e capitais, o que é meritório do seu ponto de vista, embora, entre empresas e indivíduos estimáveis, atraiam outros pouco recomendáveis. E criar empresas offshore para obter benefícios fiscais, no limite para não pagar quaisquer impostos, é ilegal? À partida não. E a Mossak Fonseca? Ilegal? Certo é que o Mundo está cheio de Mossakes Fonsecas; experimente o leitor “googlar” “como criar uma empresa offshore” e terá à sua disposição uma vasta oferta de facilitadores.

Há razões para criar uma empresa offshore? Há e são boas.

Atentemos nas razões para recorrer ao offshore: isenções fiscais ou impostos reduzidos sobre os rendimentos; privacidade e segurança; financiamentos a juros baixos; sistemas legais testados e fiáveis; profissionais experimentados em governança corporativa, legal e fiduciária; alguns autores defendem mesmo que a maior parte dos paraísos fiscais são sujeitos a regulação severa e eficaz e que as contas de bancos e empresas são objecto de verificação por parte das autoridades competentes (veja-se James Quarmby, “Em defesa dos paraísos fiscais: porque o Mundo seria muito mais pobre sem a finança offshore”).

De salientar também que as empresas offshore sediadas nos paraísos fiscais têm necessariamente negócios – comércio ou investimento – com contrapartes em países que impõe taxas sobre lucros, rendas ou juros. E o país de origem do dono ou accionista da empresa taxará o rendimento obtido, caso as leis nacionais aplicáveis sejam eficazes. Isto é, não se trata de uma isenção total de imposições fiscais, apenas de um benefício decorrente da aposta naquele país. O já referido James Quarmby conclui o seu artigo com uma vibrante defesa dos paraísos fiscais: “(…) são uma parte vital do nosso mundo globalizado – sem eles, o comércio internacional e o investimento seriam fortemente afectados, o produto global mais baixo, e o Mundo mais pobre”. Concedamo-lo, mesmo que não seja de prova fácil, pois só acabando com os offshore poderíamos ter uma ideia das consequências e, ainda assim, seria de duvidoso contrafactual, pois muitos factores poderiam concorrer para um melhor ou pior desempenho económico global.

Um dos principais atractivos das empresas offshore, para além dos benefícios fiscais, é o sigilo. Aqui reside, caro leitor, o problema: com base no sigilo e na confidencialidade ergue-se um edifício, à escala global, de camuflagem do verdadeiro e ilícito alcance da criação de empresas e território offshore. E é o sigilo que obsta ao conhecimento da proveniência ou do objectivo ilegal de uma empresa, conta ou negócio offshore, o mais forte sinal da ilegalidade de uma actividade, ainda que isso seja injusto e a empresa em causa seja, no fim de contas, legal.

Ilegal talvez, imoral sem dúvida

O offshore não é, em geral, ilegal? Sabe-se hoje, de senso comum, que o problema está essencialmente nos negócios ou nas actividades a montante, de que provem uma percentagem elevada dos capitais envolvidos nas transacções financeiras feitas em segredo – ou a jusante nos negócios que financiam. Negócios que incluem tráfico de droga, acções ou movimentos terroristas, esquemas de corrupção política, fuga aos impostos, crime organizado.

Distinta é a dimensão moral: em 2013, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução sobre “a luta contra a fraude fiscal, evasão fiscal e paraísos fiscais” em que se lia “(…) segundo as estimativas, perde-se anualmente o escandaloso montante de 1 bilião de euros de potenciais receitas fiscais devido à fraude fiscal, à evasão fiscal, à elisão fiscal e ao planeamento fiscal agressivo na UE, o que representa um custo anual de cerca 2 mil € por cidadão europeu, sem que em resposta sejam tomadas medidas apropriadas”. Alguém falou em imoralidade?

Lembro o óbvio: embora a moralidade – deixemos para já a ilegalidade – do offshore em geral seja sempre discutível, não é a mesma coisa a motivação e o bem fundado da “offshorização” (desculpem o palavrão) de um país ou território; a constituição de Mossakes Fonsecas para apoiar a criação de empresas offshore; essa criação por políticos, futebolistas, gestores, artistas, financeiros, etc; ou a abertura de conta bancária por um cidadão comum com alguma disponibilidade financeira num qualquer offshore. Posições morais distintas, no mínimo.

O mais surpreendente no caso dos Panama Papers é a surpresa com que foram recebidos. Ninguém sabia? Deleita-se a imprensa mundial, as redes sociais, vorazes, e a curiosidade de cada um de nós com o cortejo de nomes mais ou menos mediáticos. Nem todos cometeram ilegalidades, mas a todos é imputada a mancha da imoralidade imanente aos offshore.

Fica a pergunta: devem os territórios offshore ser exterminados? Afinal, como vimos, pode haver boas razões para a sua existência (sim, eu sei que a sondagem do Prós e Contras, ontem na RTP 1, rejeitou esmagadoramente essas razões, mas também mostrou como é esmagadora a ignorância sobre o fenómeno). Os offshore têm de ser regulados, supervisionados e transparentes. A palavra chave é sigilo: acabando com ele as ilegalidades não desaparecerão e terão de continuar a ser combatidas, mas o combate será mais fácil.
E talvez assim se desvaneça parte substancial da imoralidade que se cola, indelével, às actividades desenvolvidas “longe da costa” (tradução de offshore).

PS. À cautela: nunca tive empresas nem contas offshore.