Há poucas semanas, numa conferência à porta fechada em que participava o presidente de um dos grandes bancos a operar em Portugal, ouvi-o defender que não devíamos ter medo da queda mesmo de um colosso como o BES. O seu argumento foi que os reguladores tinham aprendido a lidar com estas situações, que o resto do sistema bancário estava agora mais sólido e que até o público não desatava a correr aos balcões ao primeiro sinal de alarme como sucedia no passado. Ouvi-o, confesso, com algum cepticismo. Ontem, depois de conhecer a solução para o BES apresentada pelo governador do Banco de Portugal, comecei a achar que tinha razão.

Nos últimos dias um fantasma pairou sobre o país e os contribuintes: que o BES se transformasse num BPN muito maior. Hoje há sinais de que isso não vai acontecer, mesmo que se venha a comprovar que também no BES houve mais do que má gestão, ou seja, que houve dolo ou mesmo crime. Tudo está a ser muito diferente.

Em 2008 o BPN foi nacionalizado, e com a nacionalização vieram os seus buracos e os seus “activos tóxicos”. Em 2008 a única parte do grupo que eventualmente tinha activos com valor, a SLN, ficou de fora. Agora foi precisamente ao contrário: os “activos tóxicos” ficaram com os accionistas no “bad bank”, o novo banco apenas herda os activos que valem a pena. E não só não há nacionalização, como a solução encontrada impede que o Estado fique com a maioria do capital da nova entidade por via do empréstimo que vai sair do dinheiro da troika.

Uma das coisas que esta solução tem de positivo é que responsabiliza os accionistas. A sério. A doer. A interligação que existe nos sistemas financeiros tem criado a ideia de que nenhum banco pode ir à falência, pois todos colocariam riscos sistémicos (vimos o que se passou com o Lehman Brothers).

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Sempre defendi que isso constitui um entorse às leis do mercado, pois de repente há um sector da economia em que os investidores não são penalizados por erros de gestão, más apostas ou, como infelizmente tem acontecido com demasiada frequência, comportamentos à margem da lei. O “bad bank” com que agora ficaram os accionistas do BES – grandes, médios e pequenos –, um “bad bank” que fica sem licença bancária e apenas a tentar cobrar incobráveis, parece-me a fórmula mais próxima que conheço de ir à falência. Nada mau.

Todos os accionistas, os grandes, os responsáveis, e os mais pequenos dos pequenos, os que ali tinham apenas algumas poupanças, vão ficar a perder. Já vi gente muito incomodada com isso. A mim o que verdadeiramente me incomodaria seria uma tentativa de distinguir entre accionistas “bons” e “maus”. A mim o que verdadeiramente me revoltaria seria ver dinheiro dos contribuintes a suportar erros de gestão ou erros de cálculo de quem comprou acções do BES.

Ao mesmo tempo, a solução encontrada para o Novo Banco parece-me ser capaz de garantir o que realmente era importante: os depósitos dos clientes. E também os empregos dos trabalhadores: se alguma reestruturação tiver de existir, será uma reestruturação, não uma hecatombe.

Finalmente – e aqui também este processo se distancia do do BPN – gostei de ver o Governo a participar na solução mas não a protagonizar a solução. Ainda bem que foi o regulador, o Banco de Portugal e o seu governador, Carlos Costa, a assumir o ónus do processo, a conduzir as negociações, por fim a dar a cara.

Não podemos passar o tempo a pedir reguladores fortes e independentes e, depois, a pedir ao Governo para fazer parte de todas as decisões. Mais: temos de perceber de uma vez por todas que há um espaço que é dos reguladores e outro que é dos políticos. E, já agora, reconhecer que os portugueses mais depressa confiam, em matéria de sistema financeiro, na palavra de Carlos Costa do que confiariam na do primeiro-ministro ou da ministra das Finanças. Acho que até eles têm consciência disso.

Claro está que há ainda muitas zonas de sombra que terão de ser esclarecidas. E muitas incógnitas.

Em condições normais – isto é, se não houver mais surpresas nas contas do antigo BES –, o Novo Banco tem condições para poder ir ao mercado daqui por uns meses e encontrar os novos accionistas de que necessita. Pode mesmo vir a ser um bom negócio para quem agora empresta dinheiro e para quem então comprar o banco. Mas há riscos. Há sempre riscos.

Para que exista confiança no sistema vai também ser necessário saber mais sobre o que se passou no BES e como isso escapou durante muito tempo ao regulador. Tenho excelente impressão de Carlos Costa, sei que ele mudou muito a forma de trabalhar do Banco de Portugal, não alinho no coro dos que dizem que ele devia ter alertado o país para as dúvidas que tinha (teria sido o caos e a corrida aos depósitos), mas temos de saber mais sobre como um escândalo desta dimensão escapou ao seu olhar atento. Assim como temos de ser razoáveis: há um mês ainda havia quem editorializasse a defender a rápida entronização do braço direito de Ricardo Salgado, Amílcar Morais Pires, e criticasse o Banco de Portugal pela demora.

Um bom local para compreender o que se passou seria uma comissão de inquérito da Assembleia da República. Talvez até seja uma boa oportunidade para reabilitar esse tipo de trabalhos parlamentares, que tão maltratados têm sido por excessiva partidarização.

Finalmente, o ter-se encontrado uma solução que de alguma forma permite respirar de alívio não deve servir para evitar um rigoroso processo de apuramento de responsabilidades. As palavras duríssimas do governador quando se referiu aos comportamentos da anterior administração não podem cair em saco roto. Também aqui a justiça não se pode comportar com a lentidão (para dizer o mínimo) com que se comportou no processo do BPN. Ninguém perdoaria.

PS. O desconcerto das reacções da extrema-esquerda, com particular destaque para o destrambelhamento de Catarina Martins, é um sinal de que a solução acabou por surpreender mesmo os que sabem sempre tudo até antes de tudo acontecer.