A turma da Universidade Sénior de São Brás de Alportel invadiu a Biblioteca Municipal Dr. Manuel Francisco do Estanco Louro para mais uma aula. Um a um, foram chegando os seniores: remando, com os passos, os infinitos corredores do edifício e deixando para trás um amontoado de números que se resumem em idade. Surgiam dentro da sala como sobreviventes de um dilúvio: suados, com a respiração apressada e tentando acalmar o martelo do coração. E eles recordavam-nos que eram náufragos naquela sala: “há pouco ar nesta sala”.

Um a um chegavam os universitários seniores para mais uma aula. De quando em quando, a aula parava à espera do estudante que entrava em desespero para trocar a pilha do seu aparelho auditivo. Depois, a aula retomava e os estudantes de olhos abertos como se quisessem ver o conhecimento. Que esperam ver estudantes seniores que tudo já viram na vida? As janelas já estavam abertas, mas os seus pulmões gulosos não paravam de tornar o ar num produto escasso na sala: “há pouco ar nesta sala”.

(Tenho a impressão de que em São Brás de Alportel o que não falta são os Gagos e Belchiores. E essa turma era, no fundo, um pelotão formado por Gagos e Belchiores. Um pelotão de senhores corteses e elegantes. Flores cheias de charmes enfeitando as suas idades: não é a idade que enfeita, somos nós que a enfeitamos. São Brás de Gagos e Belchiores: dava um bom nome)

Do fundo da sala desabrochou uma tosse cheia de gotículas de saliva, e a tosse foi comboiando uma voz que se esticou: “não transformem São Brás de Alportel numa cidade!”. A sala toda fica inundada de um enorme estrondo de silêncio. A estudante falou da Vila, falou das ruas que são verdadeiras sucursais de sossego, falou das pessoas que, como os rapazes de Lisboa, saltam as cancelas da frieza e dão um “bom dia” a qualquer um.

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A estudante, de quase noventa anos, deixou a turma embasbacada, pois a sua experiência de vida já lhe tinha mostrado que as cidades tornam o sossego num produto que se adquire com senhas, transformavam as pessoas em atletas olímpicos, plantavam nos cafés objectos humanos que se diluem nos telemóveis e ela não queria ver essa pequena vila transformada numa cidade porque “este sossego agrada-me imenso, juro-vos”.

Um outro estudante, de voz de um locutor reformado, depois de ressuscitar de uma profunda soneca, levantou o dedo que nem se conseguia pôr em pé e fez um esboceto da solidão: “eu acho que a questão da solidão deve ser discutida. E depois disso tudo, e depois dessa aula, o que faremos da solidão que nos espera em nossas casas?”.

E começou uma espécie de revolução dentro da sala: uns estudantes saindo, outros falando alto perdidos na ideia de que ninguém os ouvia e outros de queixo rente à mão babando de sono como pacientes num banco de um hospital. Dois ou três levantaram-se das cadeiras como sobreviventes de uma mina e puseram-se a coxear com restos de pernas comidas pelo tempo.

Uma funcionária arejou a sala abrindo a porta e, nesse exacto momento, vi a Vila São Brás de Alportel transformada em cidade entrando na sala. Os estudantes agitaram-se com o ar da cidade que entrava, vi um metro apitando e gente correndo a trote dentro da sala, turistas convertendo o Miradouro do Alto da Arroteia em fotografias, semáforos exaustos de mandar parar em vão bicicletas e motorizadas com sacos de comida, painéis de publicidade com mulheres de mini-saia nas ruas, empresas de imobiliária anunciando ruínas romanas a milhões e todo o sossego de São Brás de Alportel à procura de um táxi para sumir.

Claro que a cidade não demorou muito na sala: foi arrastada como um bicho pela estudante de quase noventa anos. “não transformem São Brás de Alportel numa cidade!”. Uma outra estudante, de quase setenta anos, que desatou a rir-se antes de falar, teceu curtas frases sobre a sexualidade, sobre o marido que morreu depois do 25 de Abril e aproveitou, antes de São Brás de Alportel ser transformada numa cidade, e ronronou: “imensas vezes sinto vontade de ter um homem que me faça mulher, sou uma velhinha mas não deixei de ser mulher”.

Duas horas numa aula qualquer de uma universidade sénior valem uma vida. São histórias que cruzam tempos, são vontades que são reveladas, são marcas de juventude que são despidas como peças de roupa e mostradas sem nenhum pudor, são lágrimas que diluem a acabam com discursos tristes e são gargalhadas que desunham da memória o prazer do que se viveu ontem com a mesma intensidade e gosto. Mas aqui faz todo sentido atrelar a voz do senhor de voz de locutor reformado: “e depois disso tudo, e depois dessa aula, o que faremos da solidão que nos espera em nossas casas?”.

Eu também não sei, meu senhor, o que farei da solidão que me espera em acabando este texto. É horrível a solidão que nos espera quando colocamos um ponto final em qualquer texto: deves imaginar. Talvez ponha, meu senhor, na minha garganta a tua voz de locutor reformado e grite para alegrar a tua colega: “não transformem São Brás de Alportel numa cidade!”.