“A “Trégua de Natal” foi um cessar-fogo espontâneo que ocorreu entre as tropas britânicas e alemãs durante o Natal de 1914, na região de Ypres, na Bélgica, em plena I Guerra Mundial. Além de canções típicas de época e trocas de presentes, os soldados dos dois blocos realizaram um jogo de futebol. Este episódio é ainda hoje assinalado com um momento simbólico de paz durante um dos eventos mais violento da era moderna.”

Imagino esta cena muitas vezes. Quem terá sido o primeiro soldado a decidir: “Malta, é Natal. Hoje eles não são nossos inimigos, hoje baixamos as armas e convivemos como irmãos. É esse o espírito do Natal” Gostava de ter conhecido esse homem. No entanto, gostava ainda mais de ter conhecido o tipo que levantou a mão e interrompeu: “Que estupidez! O que é que o Natal tem de especial para deixarmos de fazer a Guerra? Não preciso do Natal para ter vontade de conviver com os meus inimigos. Não é uma data arbitrária no calendário que me diz que é altura de jogar à bola com o inimigo. Eu jogo à bola com o inimigo quando quero, não quando uma convenção social diz para jogar. Que irritante, essa boa-vontade programada. Parece que há obrigação em estar alegre só porque é Natal”. É óbvio que houve um rezingão destes. Há sempre. Pessoas que levam a mal que se destine uma época do ano à fraternidade. Nunca ouvimos falar deste soldado desmancha-prazeres porque, no dia 27 de Janeiro de 1915, para provar que não era preciso ser Natal para jogar futebol com os inimigos, pegou na bola, saiu da trincheira em direcção à terra de ninguém e levou um tiro.

Era uma dessas pessoas que não gosta de festejar quando toda gente festeja. São hipsters do divertimento: se todos se estão a divertir, a diversão já não é assim tão divertida. Como aqueles que dizem “festejar o 25 de Abril? Para quê? A Liberdade não tem só um dia. Eu comemoro-a todo o ano”. Pelos vistos, efemérides ao dia 25 têm o condão de irritar determinadas pessoas.

O Natal provoca dois tipos de reacções infantis. Uma é a das crianças, que não percebem que é tudo encenação e ficam maravilhadas. A outra é a deste tipo específico de adultos, que percebem a encenação e fazem birra. Porque se consideram pessoas muito genuínas, que rejeitam fingir alegria apenas porque a sociedade impôs Dezembro como período para isso. Não, essas pessoas recusam ser simpáticas por obrigação, uma vez por ano. Preferem ser antipáticas por convicção, o ano inteiro.

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Levam a mal as campanhas solidárias que aparecem no Natal. Se alguém faz um peditório, dizem: “Amigo, seria fácil dar-te umas moedas agora. Mas isso qualquer um faz, por causa do sentimento de culpa que ataca quem vive confortavelmente, durante o Natal. Vem ter comigo em Março, quando ninguém sem lembrar de ti e da tua causa. Aí, sim, ajudar-te terá mais prestígio”. São pessoas que acham que é mais difícil para elas absterem-se de dar, do que para um necessitado deixar de receber.

Eu, admito, gosto muito que haja uma data designada para ser boa pessoa. Não por gostar por aí além de ser boa pessoa. Gosto mesmo é de agendar tarefas. Preciso de marcar no calendário “lembrete: ser decente”, para me organizar. Assim, já sei. Da mesma maneira que há uma época do ano específica para ir à praia e uma época do ano específica para pagar impostos, o Natal dá jeito para lembrar que, durante aquele tempo, não devo ser o sacana de sempre. Por isso, reservo um mês para estar alegre e ser cordial. As pessoas que não gostam do Natal reservam um mês para estarem amuadas.

O agastamento delas revela-se nas críticas ao excesso de consumismo do Natal. Numa matrioska de azedume, o consumismo consome-os. Não conseguindo cancelá-lo, a forma que estes rabugentos arranjam para boicotar o Natal é sugerir, sonsamente, que em vez de se gastar dinheiro a comprar presentes, se aproveitem objectos que temos lá em casa e já não usamos. A coberto da sustentabilidade, dá-se uma machadada no espírito natalício. “Reciclar presentes” é um eufemismo para “aproveitar para deitar fora o lixo”. Em vez de “achei que ias gostar disto, por isso comprei”, passamos a ter “a caminho de tua casa há um contentor que é a cara deste presente. Deixa-o lá, se faz favor”. O amigo secreto começa a ser substituído pelo ecoponto secreto. O Pai Natal está a dar lugar à Marie Kondo.