O verdadeiro Natal é em Belém. Foi também o primeiro, dado que ocorreu na quarta-feira. E o mais bonito, porque não sei de coisa tão comovente quanto um governo de criaturas mal ajambradas e risonhas que vai ao palácio presidencial saudar o prof. Marcelo e, de seguida, ouvi-lo. Naquele ambiente sagrado e puro não cabem as distracções pagãs que a modernidade infligiu às festividades, sobretudo o daninho bicho do consumismo. Pelo contrário: a ladainha do prof. Marcelo versou justamente a possibilidade, assaz próxima, de os portugueses não conseguirem consumir seja o que for. Mas já lá vamos.

O prof. Marcelo começou por lembrar ao governo que o governo é impecável e não tem culpa de nada, nada, nada do que acontece ao país. As eventuais desgraças que nos caem em cima, aliás discutíveis e toleráveis, são, evidentemente culpa da guerra. Como antes as desgraças eram culpa da Covid. E antes de Pedro Passos Coelho. E antes do Pitecantropo de Java. E em breve das alterações climáticas. De momento, porém, a culpa é da guerra, a malvada da guerra que andou anos a espalhar dinheiro para as pessoas ficarem em casa, que disseminou a corrupção nos cargos públicos, que rebentou com os serviços de saúde, que aumentou exponencialmente a dívida pública, que leva o fisco a devastar o rendimento alheio, que encolherá o poder de compra a níveis de 1980, que empurra os avisados para o estrangeiro e Portugal para os fundilhos da Europa alargada, incluindo da Roménia que, à semelhança das demais nações, é pouco afectada pela guerra e pela Covid e por Pedro Passos Coelho.

Perante isto, o prof. Marcelo notou que, devagarinho, o povo tenderá a esquecer-se de que a guerra é a culpada pelas dificuldades em comprar comida e pagar a prestação da casa e, absurdamente, poderá sentir-se tentado a responsabilizar os governantes. “É um fenómeno psicológico estranho”, explicou Sua Excelência. O nome técnico é estupidez. Sendo por definição estúpido, o povo às vezes incorre no crime de ingratidão para com os estadistas que sabiamente o guiam. O prof. Marcelo chegou a alertar para o risco de, na ceia natalícia e face ao preço do bacalhau, haver a ocasional família a criticar – “baixinho”, especificou – os senhores no poder. No limite, é possível haver quem proteste “a falta de dinheiro e de saúde”, disse o prof. Marcelo, “metendo-se com Manuel Pizarro”, cito a descrição do Observador, “que ia sorrindo ao fundo da sala”.

A pobreza e a ausência de cuidados médicos são naturais temas de galhofa para os eleitos que não os sofrem. No seu gentil primitivismo, o povo que os elege é que pode não perceber a piada e enervar-se. Contudo, ressalva o prof. Marcelo, o povo não se enervará demasiado. Manifestações a sério, insurreição geral, motins não são para nós. Embora burros o bastante para, acidentalmente, recriminar o dr. Costa em lugar do sr. Putin, os portugueses, prosseguiu o antigo docente, possuem “uma sabedoria de 900 anos”, logo “muito do que os outros estão a descobrir nós já conhecemos”. Ninguém perguntou de que modo tamanha sapiência nos deixou na indigência actual, atrás de 95% do Ocidente cristão. Ainda bem. O importante é compreender que, se a experiência de 900 anos não nos deu grande prosperidade, liberdade ou juízo, deu-nos o valor supremo do “civismo”.

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Onde é que o prof. Marcelo constatou esse “civismo”? Ora essa: nas cheias, na pandemia e, acrescento eu, em cada situação em que os portugueses são confrontados com o brutal desrespeito que as autoridades lhes dedicam. Na curiosa definição presidencial, “civismo” é a inclinação das massas para a resignação e a obediência, a genérica incapacidade para entenderem ou sequer procurarem a origem dos factos, a facilidade com que se entregam a manipulações toscas ou esmolas humilhantes. “Civismo”, afinal, é em simultâneo sinónimo e causa do atraso de vida. O prof. Marcelo desenvolveu: salvo eventuais e inconsequentes resmungos – em surdina, claro –, “os portugueses gostam de jogar pelo seguro”, pelo que “já se ajustaram aos efeitos da guerra”. Ou seja, já se conformaram à miséria que aí vem e à condenação de sobreviver mediante “apoios” cínicos ou inscrição no PS. Tivemos 900 anos para aprender a arte de engolir patranhas e propaganda.

Ignoro se algum dos presentes chorou. Eu teria chorado. Não esperaria do prof. Marcelo o Discurso de Gettysburg, ou mesmo qualquer palavrório menos superficial que um folheto do Lidl. No entanto, e apesar dos inúmeros antecedentes, não esperava isto: uma das maiores demonstrações de desprezo de um chefe de Estado pelos cidadãos a que formalmente preside. Na cabeça do prof. Marcelo, cujo conteúdo se vai revelando com crescente frequência, os portugueses não passam de excrescências sem vontade ou amor próprios, criancinhas confusas a ludibriar, figurantes em histórias que a elite de poderosos lhes conta. Este foi o conto de Natal.

No final da sessão, a elite posou para a fotografia oficial. Parecia um presépio. Um presépio em que os protagonistas habituais se viram substituídos pela Comissão de Festas da Aguçadoura, só que com pior aspecto e sem ofensa para a Comissão de Festas da Aguçadoura. Ofendidos somos todos nós. E a maioria, que dá razão ao prof. Marcelo, nem repara.