No ano que está mesmo a acabar, os presidentes Joe Biden e Vladimir Putin reuniram-se duas vezes em cimeiras bilaterais. Estes encontros têm sido vistos como eventos separados – ainda que ambos estejam relacionados com escaladas de crise entre as duas potências –, mas parece-me que a segunda cimeira acaba por ser a continuação da primeira.

A Cimeira de Genebra, em Junho, lançou as primeiras pedras na relação entre os dois estados: Biden concedeu a Putin o estatuto de “grande potência”, sabendo que não há grandes potências sem esferas de influência, conseguindo em troca duas vitórias diplomáticas; o compromisso da Rússia em refrear os ataques híbridos – a “linha vermelha” que Biden trouxe para a mesa das negociações – e uma nuance muito mais discreta, mas não menos importante. Ao reconhecer a Moscovo o estatuto que o Kremlin buscava, e ao negá-lo à China, Biden selou a hierarquia de ameaças. A Rússia passou a ser um rival ao qual se reconhecem direitos. Já Pequim é uma ameaça existencial. Com Xi Jinping não há negociações sobre estatutos internacionais ou poder, porque o objetivo final é impedir que a China tenha força suficiente para se tornar – ou manter – um ator com capacidades transformar a ordem internacional liberal. Em breves palavras, a autocracia russa é tolerável, dentro de certos limites. A chinesa não é.

Como seria de esperar, Putin veio reclamar o prémio “prometido” por Biden. Lançou 100.000 operacionais nas fronteiras das Ucrânia e ameaçou usar a força, coisa que ninguém tem dúvidas que cumprirá, caso não tenha muito boas razões para não o fazer. E com isso, forçou a administração americana a sentar-se à mesa virtual das negociações. Este encontro já não foi tão pacífico: Biden saiu a dizer que uma invasão da Ucrânia teria gravíssimas consequências económicas para a Rússia, e Putin replicou que a sua “linha vermelha” é um compromisso norte-americano de que não haverá mais alargamentos da NATO.

Muito deste impasse irá resolver-se à porta fechada, e talvez nem chegue ao nosso conhecimento na sua totalidade, pelo menos por enquanto. Mas o que Biden e Putin estão a negociar são dois elementos fulcrais para o futuro da Europa: as regras de convivência pacífica entre as partes (Washington e Moscovo) e as esferas da influência da NATO e da Rússia. Nada menos do que isto.

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Mas para isso é preciso negociar esferas de influência. E é difícil para uma potência democrática, que usa o respeito pelos direitos humanos como forma de desgastar os seus adversários, assumir que poderá ter de “entregar territórios”, como a Ucrânia ou Geórgia, a quem não respeita nada a não ser o seu próprio poder. Mas não me parece que haja grande alternativa. Tal como Roosevelt teve de negociar a Europa de Leste com Estaline, Biden, na sua senda de reorganizar o mundo, também terá de fazer cedências pragmáticas que apaziguem Moscovo, mesmo sabendo que vai ser duramente criticado por isso. Mas a atual administração também sabe que, para combater a China, é mais conveniente ter um Rússia apaziguada do que revoltada. A política internacional não se compadece de valores que não sejam quebrados quando a realidade assim o impõe.

Resta saber se é desta vez que a Europa acorda. Talvez o anúncio de Macron e Scholz sobre retomar negociações no formato “Normandia” seja um começo, ainda que tímido. Mas a ausência da Europa ou estados europeus nestas negociações entre os EUA e a Rússia que vão determinar o futuro do velho continente é confrangedora. A Europa está presa na sua geografia, e é uma total e completa inovação, que rompe com a tradição de séculos, esta ideia que se pode ignorar um vizinho com armas nucleares, exército e tecnologia convencional superior à nossa, e vontade política de usar a força. Não posso deixar de dizer que é preciso que haja uma profunda mudança de mentalidades – para começar – seguida de ações concretas. Ameaças, que a Europa não tem capacidade de cumprir, já não chegam.

O sistema internacional transformou-se substancialmente, e agora o princípio que o domina, digam os dirigentes o que disserem, é a competição. Ainda que já muito atrasados, temos, de uma vez por todas, de aprender a acompanhar um mundo no qual não nos sentimos confortáveis. Mas que não vai mudar por isso.