Imaginamos o mundo contemporâneo do consumo como uma série de escolhas e debates. As decisões acontecem diante de prateleiras onde meditaremos em cada caso; e depois, pesados os prós e os contras de cada alternativa, e informados com minúcia por relatórios ou testes, admonições científicas e opiniões de peritos, lá agarramos na farinha ou na ventoinha e vamos para casa com a satisfação do dever cumprido.

Trata-se de uma fantasia. As coisas não se passam assim, ou pelo menos não se passam quase nunca assim. Isso não faz de nós animais menos racionais, mas apenas pessoas que agem racionalmente na medida em que não gastam muito tempo a pesar prós e contras, a ler testes e a ouvir especialistas. Somos de fábrica pessoas que tendem a achar que a vida é mais do que as incertezas da escolha, e que de um modo geral confiam nas coisas. Teremos agonias e decepções, e algumas constantes; mas não têm normalmente a ver com escolhas. O poeta que não sabia se ainda se atreveria a comer um pêssego nunca considerou a possibilidade alternativa de uma laranja ou de uma avelã.

Em vez dessas algazarras mentais criamos hábitos. Os hábitos tornam as coisas mais simples porque não exigem decisões. A comparação entre marcas de farinha é substituída pela escolha alacre de uma embalagem verde com uns desenhos de ervas, ou de pudins. Naturalmente não sentimos pela Companhia Verde uma lealdade sem condições; e é muito natural que ao longo da nossa vida a afeição por uma farinha leal enfraqueça ou oscile; que façamos experiências e que algumas dêem mau resultado, e outras bom. E quando dão bom resultado, como animais racionais, passemos a comprar Farinha Azul.

Para poder formar hábitos é preciso imaginar uma certa constância ao mundo. Nenhum hábito resiste à possibilidade alarmante de nunca podermos tomar banho duas vezes no mesmo rio. Justamente os nossos hábitos dependem de se poder tomar banho nos mesmos sítios, confiantes de que os sítios não mudarão muito, ou pelo menos demais; e que nós continuaremos a ser geralmente quem éramos. Que chegados à prateleira apareça a Farinha Verde é uma fonte séria de conforto.

Não se pode por isso subestimar a catástrofe que ocorre quando o Senhor Verde decide substituir a Farinha Verde pela Farinha Verde Plus. Como todas as catástrofes será apresentada como um progresso civilizacional; mas passado um momento compreensível de fraldisquice empírica damos por nós a deplorar o desaparecimento do produto anterior, e com acinte. Se esta sensação de catástrofe for mais partilhada do que o Senhor Verde imaginara, e porque o Senhor Verde também é um animal racional, a Farinha Verde, com os desenhos de ervas ou pudins um pouco retocados, será a seguir reintroduzida como Farinha Verde Classic. Daqui deriva a única máxima de aplicação universal no mundo tão confuso das decisões morais: preferir sempre produtos com a designação Classic.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR