Ao assistir a estes primeiros dias de pré-campanha (como se distinguirá a pré-campanha da campanha propriamente dita?) recuei aos tempos da neutralidade activa. Uma expressão que definia a atitude que teoricamente Portugal ia manter em Angola perante os três movimentos a quem aquele país ia ser entregue e que na prática se traduziu por um favorecimento activíssimo ao MPLA.

E esse reencontro com a pretéria “neutralidade activa” deveu-se não tanto ao habitual enviesamento das redacções a favor da esquerda (é verdade que existe mas também é verdade que pode ser ultrapassado, como provou Cavaco Silva) mas sim porque a cobertura informativa dita independente que se dedica às campanhas se traduz, na prática, por uma neutralidade activamente a favor do populismo.

A forma como se procura que Passos Coelho ou António Costa digam que vão fazer cortes na Segurança Social é disso um exemplo. A turma do soundbite sabe que o candidato que afirme que vai fazer cortes na Segurança Social se transforma imediatamente no bombo da festa mediática destas eleições. Logo tentam a todo o custo sacar a frase que sabem assassina. Do outro lado, Passos e Costa garantem que não vão fazer cortes. E os jornalistas repetem que eles não vão fazer cortes como se tudo não passasse de um jogo, um jogo chamado “o que deve dizer um candidato”.

A hipocrisia que reina em torno deste assunto é criminosa: os cortes na Segurança Social vão acontecer inevitavelmente. Nem que começássemos todos a ter agora os filhos que não tivemos já não íamos a tempo e a economia nunca crescerá de modo a compensar os descontos que não foram feitos.

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Mas se um candidato disser isto sabe que cria o caso da campanha. E estamos nisto há vinte anos: a 28 de Outubro de 1995, António Guterres tornou‑se primeiro‑ministro. No início de Março de 1996, foi constituida a Comissão do Livro Branco da Segurança Social, um grupo de reflexão que deveria apresentar propostas de reforma do sistema, cuja sustentabilidade já se considerava estar em risco.

Mas a “reforma da Segurança Social” gerou de imediato sinais de resistência. Alguns desses sinais vieram do próprio PS: ainda em 1995 teve lugar uma Convenção do PS em que as reformas em preparação no domínio da Segurança Social geraram polémica.

Assim que começaram a sair notícias sobre os trabalhos da Comissão do Livro Branco da Segurança Social percebeu‑se que ia ser impossível fazer passar a reforma: Correia de Campos, que presidia à comissão, passou de imediato a ser rotulado como “ultraliberal”. A discussão em torno da Segurança Social transformou‑se quase automaticamente num confronto maniqueísta em que os bons defendem a imutabilidade do sistema e garantem que ele é sustentável, e os maus são aqueles que propõem alterações no sistema, alterações essas rapidamente apresentadas não como procurando garantir a sustentabilidade, mas sim como manobras do “lobby das seguradoras” e do “lobby do plafonamento”.

Em 1995, a solução para a sustentabilidade da Segurança Social estava no combate à subdeclaração de rendimentos e na aposta à cobrança das dívidas. Havia contas fabulosas sobre o dinheiro que o Estado devia à Segurança Social. Sem sequer se atentar que o dinheiro do Estado é o dinheiro dos contribuintes, e que teriam de ser estes a pagar as mirabolantes contas sobre essa dívida, garantia-se que, paga essa dívida, a Segurança Social seria sustentável. Não seria mas isso não interessava nada. Para cúmulo iam ter lugar eleições autárquicas em 1997 e o PS não se podia dar ao luxo de ir para a campanha com os jornalistas e os autarcas em pé de guerra por causa das cedências ao “lobby das seguradoras” e ao “lobby do plafonamento”.

Qualquer semelhança com os dias de hoje não é coincidência (a não ser que o PS de António Costa passou a alinhar pelas teses daqueles que em 1996 inviabilizaram a reforma da Segurança Social de Guterres): em 2015, ao lobby das seguradoras e ao lobby do plafonamento juntaram a extrema-esquerda e o PS o tenebroso lobby da especulação financeira. Já a mitologia em torno do combate à subdeclaração de rendimentos e dos efeitos miraculosos da cobrança da dívida do Estado que garantiriam a sustentabilidade da Segurança Social deu lugar à fé no crescimento económico (podem quantificar qual teria de ser esse crescimento para que ele pudesse garantir essa sustentabilidade?) e sobretudo na procura de outras fontes de financiamento.

Os jornalistas, os comentadores e os assessores adoram a expressão “outras fontes de financiamento”. Tanto Passos como Costa já perceberam que a podem usar à vontade. E os jornalistas repetem “outras fontes de financiamento” como se tudo se resumisse a um abrir e fechar de torneiras como nos velhos problemas da escola primária.

Mas que fontes são essas? As portagens como sugeriu António Costa? Mas as portagens nem sequer chegam para pagar as PPP rodoviárias! As empresas de capital intensivo porque empregam menos pessoas? Mas não são essas mesmas empresas aquelas que nos passam a vida a dizer que devemos proteger porque não só pagam melhores salários como pela sua própria natureza mais tecnológica empregam mais jovens e fogem menos ao fisco? Com o dinheiro dos impostos? E o dinheiro dos impostos nasce nas repartições de Finanças? É que a não ser que isso aconteça não vejo como não é isso um corte: o dinheiro dos impostos é dinheiro que se corta nos rendimentos dos contribuintes.

A não ser que alguém “dê um tiro no pé”, PS e coligação não sairão, em matéria de Segurança Social, do discurso das fontes alternativas até ao final da campanha. Tudo indica que também não se ouvirá daquelas bocas uma palavra sobre o que farão caso não consigam maioria absoluta. E os radicais, a quem os jornalistas, e em boa parte os líderes democráticos, reconhecem uma espécie de superioridade moral, acusarão tudo e todos sem que ninguém os questione sobre as consequências das suas propostas.

Não é por acaso que nos confrontamos com protagonistas como Tsipras e Iglesias. Ou se quisermos numa versão mais doméstica com aquela figura cujo nome agora parece mal pronunciar mas que até há pouco era considerado imbatível nestas técnicas de campanha. Politicamente eles fizeram-se em estúdios de televisão, especializaram-se em acusar os outros e em não responder nada sobre si mesmos e as suas propostas. Eles são também o resultado da neutralidade activa. Agora a favor do populismo.