Recentemente “experienciei” um debate sobre a exploração de lítio em Portugal. Digo que “experienciei” por detestar essa palavra e a mesma me parecer bem adequada ao que consigo recordar. Nesse debate as intervenções e o espírito da plateia pareciam estar alinhados e apontar para a “inevitabilidade” da adesão do grupo ao greenwashing, isto é, sustentabilidade, economia verde, descarbonização da economia, green mining, e outras palavras de ordem semelhantes.

Nesta reunião, e noutras semelhantes, o contraditório é apontado como uma “resistência à modernidade” e resume-se, tal como aconteceu, à apresentação de umas poucas entrevistas a idosos de um interior felizmente esquecido, a quem era perguntado porque não queriam a exploração do lítio junto à soleira da porta. Nos dois ou três entrevistados a resposta pareceu-me sempre prévia à questão: porque nos vai fazer mal à saúde (isto dito por pessoas com 90 anos não deixa de ser notável!); porque tenho medo de que os campos fiquem contaminados; porque os animais não vão ter que comer; etc.

Esperava eu que nesse debate fossem levantadas questões como: têm as populações o direito a decidir sobre o seu território, ou deve este subjugar-se ao interesse nacional? Como é medido o interesse nacional? Como articular a liberdade individual com a liberdade de não condicionamento? Como garantir que uma exploração de um minério com 97% de escórias seja sustentável? O que significa ser sustentável? Os recursos hídricos necessários na extração podem comprometer as necessidades das populações? Porque é importante a exploração de lítio em Portugal? Qual é o valor das reservas que temos em território nacional? Essa disponibilidade de minério justifica a agressão ambiental e o sacrifício das populações? O lítio minerado vai ser utilizado na indústria nacional, ou é para exportação? Estaremos a abrir portas giratórias para um qualquer decisor político? Que garantias há de preservação do ambiente e da geografia? A avaliação de impacto ambiental foi feita por uma entidade independente? Existe um fundo constituído para reparar o impacto ambiental? É suficiente? Existem projectos para a recuperação das zonas de exploração ou limitam-se a planos e intenções? Podemos confiar no que nos é dito?

Na decisão das políticas públicas, e deste caso em particular, estas eram as questões que gostava de ver debatidas, mas infelizmente a forma com a discussão decorreu (e decorre) é sempre no sentido de espicaçar as posições NIMBY” – Not in my backyard, ou BANANA” – Build absolutely nothing anywhere near anything, para depois de uma passagem pelo greenwashing as exporem ao ridículo.

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Mas mais não é do que soberba. E para os que se atrevem a levantar questões, os rótulos logo vêm de rajada: “o processo é democrático e esteve em consulta pública”.

E este, como muitos outros, efectivamente esteve! Podemos aceder ao site da consulta pública para a “Concessão de Exploração de Depósitos Minerais de Lítio e Minerais Associados” da área mineira do Couto do Beça, entre a Serra do Barroso e a albufeira do Alto Rabagão. Neste site podemos encontrar perto de uma centena de documentos. Destes, o documento de síntese tem 846 páginas! O documento de resumo é mais pequeno (43 páginas) mas contém essencialmente mapas e intenções. Não restam dúvidas da honestidade e lisura do processo.

Não me iludo e sei que estas questões são difíceis e não têm resposta óbvia. Necessitam debate, consomem tempo e energia.

Mas a exploração de pedreiras ou de minas a céu aberto em Portugal tem sido catastrófica tanto para o ambiente como para a geografia, pelo que este não é um assunto que possamos dar como encerrado. Se alguma dúvida sobrasse, bastava ir até à Serra de Aire, Serra dos Candeeiros, Porto Mós, Estremoz, Borba, Vila Viçosa e Alandroal, Ponte de Lima, e muitos outros locais para ver o que resultou da ganância de uns associada à incompetência e cegueira de outros.

Quem se deslocar à Vila mais antiga de Portugal e olhar para NO vê um monte imponente, pujante que marca o relevo e aconchega essa lindíssima vila como se a mãe natureza ainda abraçasse no regaço. Mas essa imagem tem algo que nos choca. O seu corpo está mutilado como se um guloso, ávido por um lucro fácil um dia lhe tivesse dado uma colherada, e sem qualquer arrependimento ali deixou aquela cicatriz para memória futura. Nem a tentou disfarçar, ali está a sublinhar a agressão ao nosso sentimento de pertença, ao património que é de todos. De todos os que dela desfrutam ou dependem, mas também da memória dos que ali viveram e das gerações vindouras, elas também com direitos que deveriam ser invioláveis.

Este crime está longe se ser exceção e basta fazer um pequeno desvio da A1 e A2 para ver o resultado das falsas declarações de amor ao interior e à natureza. Os atentados ao relevo e à geografia polvilham o território, e nem os acidentes como o ocorrido em Beja nos fizeram arrepiar caminho, ou impedir que agressões à natureza proliferem impunemente perante a nossa indiferença e entrega ao crescimento.

Os atentados repetem-se, mas quando lançamos os planos dizemos sempre que são sustentáveis. E quem for contra esses projectos, ou é inimigo do progresso e bem-estar das populações, ou, como agora surgiu nesta nova agenda, é inimigo do “desenvolvimento sustentável”.

Não irei desenvolver o que entendo por “necessidade de crescimento” ou “sustentabilidade”, apenas me interessa nesta reflexão comentar como são tratadas as pessoas que resistem a esse projectos, de que a exploração de lítio é um exemplo, e por que motivo lhes fazem oposição.

A resistência mais frequente é a que é assumida por aqueles que não se opõem às inovações, mas que não querem ser afetados pelas consequências negativas. A par destes há a posição dos peritos e políticos sempre à espreita da “gamela”, e a dos dirigentes autárquicos que, como um qualquer “Erdoğan”, aguardam como predadores a oportunidade de “negociar”. Atire-se-lhes dinheiro e as resistências caem.

A posição dos “NIMBYistas” é conotada com um certo solipsismo social. Os “NINBYistas” são egoístas, mas têm o direito de o ser, e o “bem de todos”, antes de lhes ser imposto, deve ser demonstrado e fundamentado. Ora para fundamentar esta intromissão na esfera individual há que responder às questões acima enunciadas.

Na imposição às populações de geografias selecionadas para a exploração do lítio o “mainstrem” tem sido o de convencer os resistentes e não propriamente tentar entender as resistências e saber se as mesmas são ou não justificadas.

Na argumentação de decisores e investidores, à sustentabilidade da exploração do lítio foi-lhe acrescentada a noção de “green mining” e a sua indispensabilidade para a transição energética e descarbonização da economia (claro está que ninguém questiona se o minério extraído vai ser utilizado na indústria nacional – criando economia e emprego verde! – ou se segue para exportação e dessa forma contribui para o empobrecimento do território). Mas termos como sustentabilidade, transição energética e descarbonização são palavras e conceitos fortes, usados frequentemente, demasiadas vezes, mas que é importante que sejam “dissecados” antes de interiorizados como “algo bom”, usados como rótulo que magicamente cunha de boa toda e qualquer intervenção. O risco é o de este léxico ser utilizado como o “greenwashing” de uma qualquer agenda escondida.

E é neste escrutínio que entram os média e os centros de excelência (Universidades), que, para poderem desempenhar a função de escrutínio, têm de ser independentes do poder político e não funcionar como degrau intermédio entre os mundos do poder e dos negócios.

Vivemos numa sociedade de factos e certezas. Facilmente acedemos ao “espírito do tempo”, ao que nos parece ser correto sem termos a capacidade de reconhecer as contradições em que caímos. Na espuma dos dias, quando nos posicionamos perante questões como a da sustentabilidade, crescimento económico, natalidade, economia verde, liberdade, equidade, justiça social, e muitas outras, a todas estas questões respondemos com um redondo e inequívoco sim. Raramente pensamos é nas consequências das nossas certezas e de que forma estas se articulam.

Vivemos numa sociedade de certezas em que os factos são apresentados como axiomas isolados – verdades que não carecem de demonstração. E fazemo-lo porque somos uma sociedade com tendência à facticidade – uma sociedade que reage aos factos sem meditar, sem perspetivar a sua representação no futuro. Uma sociedade assim é uma sociedade sonâmbula que quando reage já as consequências são irreversíveis.

Outras vezes, e mais frequentemente os factos mais não são do que mentiras estruturadas, umas conscientes, outras nem por isso. E a mentira complica-se quando o cinismo de topo (líderes e elites) coincide com o cinismo de base (recetividade à mentira). Desta confluência de cinismo temos exemplos na actuação dos Trump, Bolsonaro e Putin. Neste mundo distópico a melhor definição de verdade é aquela que nos é apresentada pelos construtores dos factos alternativos: “verdade é aquilo que podemos fazer com uma mentira”.

E o que tem isso a haver com a exploração de lítio?

Tem, porque a resposta a questões como a sustentabilidade, a necessidade de crescimento, o modelo económico, a liberdade absoluta, liberdade de não condicionamento, e equidade, são questões para as quais não é fácil encontrar resposta, e muito menos ter a certeza que a escolhida é a mais adequada. Para procurar resposta é necessário debate e este tem de ter contraditório.

O nosso ambiente, a preservação da geografia, a exploração de recursos são questões que têm tido pouco debate e quase nenhum contraditório útil. O tema tem sido prioritariamente mediatizado e a mediatização prejudica o debate. Têm lógicas diferentes. Enquanto no debate o contraditório é indispensável, na mediatização todos os dados são admitidos, e a confusão instala-se tanto pelo lado do excesso de dados, como porque a mediatização dá igual relevo a todos os argumentos.

Neste misto de políticas editoriais e insondável dispersão de opiniões, os média tornam-se manipuladores da realidade.

Noutros casos, o “abafar” é a palavra de ordem. E, raramente, quando algum tema passa esta peneira, e tem estatura para discussão pública, só permitem aceder ao debate quem conseguir comprimir o cérebro no espaço de um “twitte” (280 caracteres).

Enleada em mentiras e numa realidade alternativa tão arreigada ao politicamente correto, o debate público sobre as questões tidas como importantes está inquinado tanto pelos reflexos condicionados da sociedade como pela mal direcionada mediatização dos temas.

Apesar da ausência de um debate honesto sobre questões de ambiente e modelo económico, mesmo assim há quem resista à vertigem da necessidade de crescimento, e à paleta verde com que nos pintam esse admirável mundo novo. E quando alguém resiste, vá lá saber-se porquê, logo o “poder democrático” assume posições autoritárias como as que o ministro da tutela tomou ao propor uma mudança da lei quando a câmara de Moita se manifestou contra o aeroporto do Montijo. Se o que move a tutela não é novidade para ninguém, já as posições assumidas pelos que se colocam no campo oposto – NIMBY ou BANANA – devem ser escrutinadas antes de incineradas no “greenwashing” da praça pública. E nem sempre o uso da liberdade de se ser contra está errada.

A liberdade está sujeita a uma ética, a um conjunto de conhecimentos, sentimentos e impulsos interiores que modelam o nosso comportamento, a nossa postura perante o planeta e a preservação da vida, seja qual a forma com que esta se manifeste, e que deverá impelir-nos para uma conduta mais responsável para com estes valores, e levar-nos a abraçar as necessárias modificações do nosso estilo de vida para que possamos legar às gerações futuras um mundo pelo menos semelhante ao que fomos incumbidos de preservar. Um mundo que respeite os oceanos, que não esteja contaminado por químicos e outros poluentes, um mundo onde a biodiversidade não seja afetada pela actividade humana, um mundo pintado com as cores de rios, mares, montanhas, vales, glaciares, calotes polares, recifes de corais e toda a maravilhosa euritmia de vida, desde o mais simples procariota ao mamífero mais complexo, que um dia, há muitos milhares de anos, levou, a que um sapiens olhasse, para cima, para a vastidão vizinha e para dentro de si. E maravilhado com tanta beleza, proporção e equilíbrio, achasse que só um ser magnífico seria capaz de conceber tamanha ordem e harmonia.