Estou, como milhões de portugueses e portuguesas, num bunker a cumprir a quarentena. Faço-o por mim, pelo meu filho, pelo meu pai, por nós. Recebi o briefing de forma clara – não sair para que não haja contaminação sem controlo que conduza à ruptura do já fragilizado SNS. Abriguei-me e esperei. Acima de tudo, confiei. Confiei na OMS, na DGS, no PR, no PM, numa série de siglas, e em mim. Abriguei-me e esperei.

Comigo estão milhões nos bunkers da pandemia. Organizados, solidários, a aguentarmo- nos, crentes no sucesso do esforço colectivo. E ele aí está – o tal planalto, conquistado como se fosse o derradeiro lugar na terra. E mesmo depois da conquista, sabemos que não chega. Mantemo-nos no bunker, em ordem, abrigados e expectantes.

Eis que vem o Ministro das Finanças largar a bomba para dentro do bunker. O que aí vem é uma desgraça. É a pior das desgraças jamais sentida. A tragédia e o horror anunciam-se na queda do PIB.

É verdade. Se a crise já era esperada, acentuou-se com o lastro que meses sem produção deixam a uma economia. É verdade, será a maior das crises para as gerações vivas. E agora, o que se faz com isto? É o fim?

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Diagnosticaram-me um cancro há menos de um ano. E agora, o que se faz com isto? Se o diagnóstico me tivesse sido dado pelo Ministro das Finanças, já tinha morrido. E não da doença. Do medo que paralisa a respiração — morreria sem ventilador.

Este discurso do Governo, numa altura em que o medo paira sobre a nação, o medo do contágio, da doença, o medo do desemprego, de não ser capaz de pagar a renda ou a escola, este discurso nesta altura é um discurso vazio. é um discurso vazio. E por isso perigoso.

A mim disseram-me: é um cancro. É grave. Com este tratamento, a probabilidade de cura é elevada. O meu cancro era conhecido. O mundo pós pandemia é novo. Não existe tratamento. É preciso encontrá-lo. Não chega avisar que a desgraça vem aí, é preciso que o esforço colectivo que se conquistou se repercuta na procura da solução. Fazemos parte dela. Somos técnicos, pensadores, industriais, docentes, criativos, operários.

Queremos acreditar que, como a equipa que me tratou, também o Governo se rodeia das melhores pessoas, das mais competentes, das que compreendem que uma economia, como uma sociedade, é de todos e de todas. Não queremos a nossa vida decidida pelos quatro amigos a quem é pedido que escolham mais quatro para atribuir os subsídios. Não queremos um país de subsídios a empresas que já agonizavam antes da crise, de congelamento de rendas exorbitantes, de soluções que adiam a cura. Queremos equipas especializadas que analisem os recursos e que proponham a sua reutilização adaptada a uma nova realidade.

Os grandes recursos de um país, a sua maior riqueza, são os recursos humanos – somos nós. São as pessoas certas nos lugares certos que fazem um país produtivo. As nossas competências são devidamente aproveitadas ou estamos a rasgar dinheiro porque as desprezamos? Para salvar o corpo é preciso erradicar o cancro, às vezes, tirar a mama. Pô-lo a funcionar contra a morte, reconstruí-lo.

Afirmámo-nos como um país adulto, capaz de impor regras e de as cumprir. Crescemos. É urgente um líder que o reconheça, que construa um discurso limpo, sólido, sem dramas ou eufemismos. Que pegue na democracia e a leve em frente, que reconheça que é tempo de proteger a economia nacional sem fundamentalismos. Não chega propor a figura de lay-off: é preciso assumir que muitos a vão utilizar sem pudor; que há empresas com trabalhadores em lay-off que continuam a trabalhar por turnos; que há empresas que aproveitam para declarar falência; que é preciso recompensar quem se esforça por cumprir compromissos, manter os empregos e a esperança intactos; que é preciso não ter medo de diferenciar com base no mérito. E perceber que haverá sempre quem queira fazer parte da mudança, decidir o tratamento, e quem espere que a decisão venha de fora. Precisamos de ambos. E de um Governo capaz de pegar no esforço colectivo e fazê-lo crescer.

Senhoras ministras e senhores ministros, há pessoas capazes de reconhecer o medo sem paralisar, de combater doenças que não conhecem por confiarem em quem as acompanha. Somos milhões. Tratem-nos de acordo com o que somos.