A grande questão que se coloca hoje, depois do empate com a Islândia, é, obviamente, a de saber que posição vai ocupar Marcelo, o polivalente, no próximo jogo. Ou, em termos mais técnicos, que aprendi há uns anos com um sapateiro que lia A Bola, qual será a sua “área de jurisdição”. Por mim, espero que seja uma posição onde possa desenvolver a sua grande capacidade de efabulação narrativa no jogo pela cabeça, para falar como um jornalista do Jornal de Notícias que comentava, nos anos oitenta do século passado, os prodígios de Rui Águas num jogo do Benfica contra o Steaua de Bucareste. A combatividade peituda (mesma origem) poderá ficar a cargo de António Costa. Talvez assim os quatrocentos gramas de couro insuflado (em versão erótica, a rechonchudinha) possam rolar em nosso favor. E, é claro, importa que o treinador habilite e não atrofie (ouvido há trinta anos no antigo Estádio das Antas).

Espero que a virtuosa exibição de saber futebolístico do parágrafo anterior tenha impressionado alguém. Mas apresso-me a dizer que estou consciente que nem Marcelo nem António Costa foram seleccionados para nos representar em França. Acontece apenas que decidi deixar falar as impressões que jornais e televisão inculcam no espírito por estes últimos dias e que, não fossem os obstáculos que a razão impõe, me conduziriam fatalmente a essa crença.

Ela não seria, de resto, do ponto de vista simbólico, verdadeiramente estapafúrdia. Estou habituado, como a generalidade dos meus compatriotas, à assimilação bruta e crua, com alguma sofisticação retórica aqui e ali, do destino da selecção ao destino da Pátria. Mas, francamente, não me lembro de alguma vez a coisa ter atingido as proporções cósmicas que desta vez atingiu, em grande parte devido ao alto patrocínio de Marcelo. Não afirmou ele que “na nossa selecção, estão os melhores de todos nós”? Não os melhores futebolistas – os melhores de todos nós, mesmo. Se eles perdem, o que será de nós? Que humilhação terrível nos espera, se mesmo os melhores soçobram? Já não é só assimilação. É antes fusão. Ou, se quisermos ser rigorosos com as palavras, confusão.

Não ando dado a excessivos enternecimentos com sofrimentos espirituais, próprios ou alheios. Mas, em todo o caso, esta obscena confusão, além de me tirar algum do prazer que tenho em ver futebol, aterroriza-me. Poderia detalhar vários aspectos desse horror, mas fico-me por um, que me interessa desde há algum tempo. É o horror produzido por gente (Marcelo em primeiro e omnipresente lugar) que aparenta depositar uma imensa esperança salvífica em algo que não depende de nós. Sublinho: não depende de nós. Não depende de nós que Quaresma ou Ronaldo estejam em plena forma e cilindrem convenientemente o inimigo com um sem fim de golos. Não depende de nós, não depende da nossa deliberação, que Portugal ganha ou perca. É claro que não vem mal nenhum ao mundo em, de vez em quando, apostar naquilo que é independente da nossa vontade, e viver essa aposta com entusiasmo. Mas quando a coisa atinge as proporções que está a atingir, e quando se dá essa radical confusão entre os destinos da selecção e os destinos do país, algo vai muito mal. A deliberação, o processo que começa com um desejo e se termina com uma escolha e uma acção supostas serem as melhores para a satisfação desse desejo, tende a ser substituída pelo pensamento mágico. Não só em relação à selecção: em relação ao país.

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Isso leva-nos ao hino da selecção, da autoria de Pedro Abrunhosa. Não discuto decisões estéticas. Se alguém me disser que a canção Taras e Manias, do consagrado Marco Paulo, representa uma experiência musical de valor superior ao de Tristão e Isolda, não discuto, porque, em sentido estrito, não posso provar que não é assim. Note-se que até aprecio a letra da canção, ao ponto de a saber de cor, e quem sou eu para julgar Marco Paulo? Mas a minha aposta vai para Wagner, que é, digamos, mais subtil. Na impossibilidade de provar, limitar-me-ei a evitar no futuro conversas sobre matéria estética com os adeptos de Marco Paulo. Isto apenas para dizer que me furtarei a juízos propriamente estéticos sobre a música de Pedro Abrunhosa.

Resta que a leitura da letra do hino, e abstendo-me de considerações sobre a sua natureza sussurrante, e sem menção também ao seu previsível efeito negativo sobre o espírito dos jogadores, só pode confirmar os meus piores receios. É a mensagem de Marcelo no seu estado puro. Teoricamente, temos de viver estes tempos com gritos de dor e gritos de prazer, matarmo-nos de amor, como nos acontecia no tempo das Descobertas, e, depois de muita insónia, voar e enlouquecer. Pessoalmente, acho tudo isto muito arriscado. Não haveria uma maneira menos perigosa e mais sóbria de dizer: “Vá lá, rapazes, joguem bem!”? Não deve ser por acaso que, não há muito, segundo me contaram, Marcelo e Abrunhosa protagonizaram um dueto televisivo.

Gosto, como muita gente, de ver os jogadores chutarem os quatrocentos gramas de couro insuflado, ou, na preparação de um livre, acariciarem a rechonchudinha. Até tenho mudado a hora de um encontro ou outro para poder ver os jogos na televisão. Não há questões de vida ou de morte aí. O problema vem quando tudo isso, e o vôo e a loucura celebrados com rugidos sussurrados pelo cantor Abrunhosa, são transportados para a sociedade, para a nossa quotidiana vida comum. Não convém que essa radical versão da teoria dos afectos, congeminada pela grande capacidade de efabulação narrativa no jogo pela cabeça de Marcelo, tome conta de tudo. Mas, pelo caminho que as coisas levam, pela extrema confusão que se anda a ver, é provável que aconteça assim. Tanto entusiasmo por aquilo que não depende de nós faz-nos esquecer o que temos de fazer, e podemos fazer, para nos salvarmos do pior. Para usar as sábias palavras do adepto, o entusiasmo excessivo não habilita, atrofia. E arriscamo-nos a, no fim, perdermos o jogo mais importante. E não vale a pena dizer depois: “A culpa é do árbitro”.