Dia 01

Não consigo sentir o cheiro do meu perfume, disse o meu pai. A viver sozinho, em confinamento há vários dias, e com as saídas reduzidas ao essencial, sempre de máscara, parecia impossível ter sido contaminado. Ao fim da tarde, a minha irmã, com quem o meu pai tinha estado quatro dias antes quando precisou de ajuda com o telemóvel, recebeu a confirmação de que tinha COVID: as dores no corpo, a febre, o extremo cansaço, a tosse, não eram gripe.

O número oficial de novos casos ultrapassava os 15.000. A minha irmã era um deles.

Dia 02

As instruções da Saúde 24 foram simples. Claras: ficar em isolamento; aguardar o contacto do médico; ligar se os sintomas se agravassem; registar a evolução através do link enviado por email. Simples. Simples, se o meu pai não tivesse degenerescência macular relacionada com a idade. Simples, se ainda conseguisse ver o indicador do termómetro. Simples, se não tivesse uma doença pulmonar obstrutiva crónica. Simples se a COVID não fosse uma doença com uma evolução heterogénea em que um dos sintomas mais graves é a hipoxia silenciosa, ou seja, a diminuição do oxigénio sem sinais físicos visíveis.

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O número oficial de novos casos ultrapassava os 10.700. O meu pai era um deles.

Dia 02 – meio da tarde

A médica do Centro de Saúde telefonou para saber dos sintomas e reforçar a obrigatoriedade do isolamento. Zero contactos. Em resposta ao pedido de assistência em casa, informou que não havia recursos para apoio domiciliário. Ia telefonando para saber. Ah, e se piorasse, que ligasse para a Saúde 24. Quando confrontada com a informação de que demorara mais de uma hora para ser atendido pela linha de Saúde 24, respondeu ah, então se agravar ligue logo para o 112. As melhoras. Vamos acompanhando.

As imagens da fila de espera das ambulâncias à porta das urgências do Hospital de Santa Maria passavam ininterruptamente nos canais generalistas.

Dia 03

O meu pai foi para casa da minha irmã. Criou-se um grupo de estafetas familiares, organizaram-se ementas para deixar as refeições à porta, enviaram-se revistas e jornais em pdf, comprou-se o oxímetro na farmácia. As horas passaram a ser contadas em saturação de oxigénio e avaliação de sintomas, à distância, ao telefone, medindo as pausas entre palavras, atentos à respiração, a esconder o receio, a acreditar que podia correr bem.

Dia 04

A saturação de oxigénio do meu pai baixou dos 90% para 80%, sem que a respiração se alterasse. Foi para a urgência do Hospital da Luz. Entrou sozinho, às 13h00. Às 21h45 recebi uma mensagem do CHLO a dizer que o utente estava a ser atendido pelo médico. Ao longo de três dias recebi mensagens da urgência, sempre as mesmas, alternando entre “o utente aguarda realização de exames”, “o utente aguarda reavaliação médica”. Sem outra informação, aquelas mensagens garantiam que o meu pai estava vivo, que alguém olhava para ele, alguém accionava o procedimento automático de informação.

O número oficial de internamentos por COVID foi de 6.585. O meu pai era um deles.

Dia 05 a 07

A minha irmã, cada vez com mais dificuldade respiratória, piorava a cada telefonema. Ligava para a Saúde 24, esperava uma hora, era atendida e orientada: a saturação de oxigénio varia, não se preocupe; se baixar dos 92% vá para o hospital; talvez seja um pouco de ansiedade; o oxímetro pode não estar bom. Foram três as idas às urgências.

Dia 08

Ao terceiro dia com níveis de saturação de oxigénio abaixo dos 90%, sem força para ir do quarto à cozinha, a minha irmã regressa às urgências. Ficou, como centenas de pessoas nessa noite, sentada num dos cadeirões recuperados às salas de espera, aos gabinetes e aos quartos, em espaços reinventados por onde tentava passar quem media o oxigénio, auscultava, tirava sangue, servia um sumo.

Cá fora, ouviam-se as notícias, relatos alarmistas de serviços a rebentar, de falta de recursos técnicos e humanos, de escolhas entre quem é tratado e quem morre. Por contraste  com o dramatismo e a ansiedade dos repórteres encostados ao portão, dentro dos contentores instalados no jardim, os cuidados prestavam-se com precisão e  técnica, ao ritmo imposto pelas necessidades. Entre turnos infindáveis, mais as horas gastas a vestir e a despir o fato a cada entrada e saída do covidário, com o suor a escorrer por debaixo da roupa, as equipas de saúde asseguravam a possibilidade de sobrevivência — sem dramas.

Dia 12

A minha irmã regressou a casa ainda em isolamento. Agora o serviço de estafetas está alargado aos amigos e vizinhos.

O meu pai já passou de um aporte de oxigénio de 15lt para 6lt por minuto. São boas notícias. Está à espera de vaga numa enfermaria não-COVID. Falamos por vídeochamada através de um telemóvel da equipa de enfermagem, quando o serviço está calmo. Nem sempre é possível. Não importa. Confiamos. Confiamos na resiliência, na dele e na de quem o assiste. Confiamos na médica que o avalia, na enfermeira que lhe leva o telemóvel, na assistente operacional que desce ao átrio para vir buscar o pastel de Chaves que lhe queremos fazer chegar num Domingo de chuva.

O meu pai e a minha irmã sentem que tiveram muita sorte. Onde o Governo falha, as equipas do SNS cumprem.