Nota prévia: esta crónica não é sobre pessoas, mas sim sobre o significado político do governo saído da crise das legislativas. O que mais surpreendeu foi a sua dimensão exorbitante: é o segundo maior dos últimos quarenta anos mas pretende apresentar-se como um «governo de combate» numa fase de altíssima incerteza, desde as Presidenciais a decorrer em Portugal e sucessivas eleições na UE, até à evolução acelerada da agenda internacional com a multiplicação de frentes bélicas, desde o terrorismo islâmico à chamada crise dos refugiados… Espanta, pois, em anos de cinto apertado, que um partido minoritário tenha formado um governo com mais de cinquenta pessoas para gerir um orçamento controlado pela UE…

A minha impressão é que o anunciado «governo de combate» é o exacto oposto disso: é, sim, um governo de defesa dos grandes interesses corporativos que têm dominado a cena político-partidária do país desde 1976. Se não, vejamos: o governo tem apenas um pequeno núcleo de políticos profissionais para gerir uma coligação semi-secreta. Os outros são, não direi amadores, mas basicamente dezenas de representantes das corporações profissionais que têm dominado a vida política nacional. A grande corporação é a universidade pública, cujos membros entram e saem dos governos mantendo e até subindo nas suas carreiras, encabeçadas pelos membros das faculdades de Direito. Quando o tirocínio terminar, voltarão às suas casas-mãe sem perda de privilégios, porventura com vantagens.

Os professores de Economia, incluindo o ministro da Finanças que não é um especialista da área, mas antes da Educação, de cujo caso já falaremos, renovam-se uma vez mais por uma série de ministérios cujas reais competências estão, à partida, condicionadas pela política monetária e financeira UE. O que faz então com que as equipas de universitários sem experiência política nem empresarial se multipliquem há décadas, se não é para emprestar aos políticos profissionais uma cobertura académica que pouco ou nada tem que ver com as decisões que têm de tomar?

Em contrapartida, profissões que melhor ou pior puxam pela economia no sector privado, concretamente empresários e engenheiros, continuam a brilhar pela ausência, em especial nos governos de cariz socialista. Sem ofensa, os professores de economia deste governo caracterizam-se, em geral, pela falta de experiência profissional… Em compensação, é lícito perguntar quem ganha com a sua numerosa presença no governo? Uma coisa é certa: para além de representarem as corporações, não há relação evidente entre o número de titulares de postos governamentais e as verbas exíguas que lhes são afectas: a investigação científica e a cultura são casos flagrantes.

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O que me leva à pasta da Educação, onde as actividades da ciência e da cultura se poderiam albergar com a vantagem das sinergias, como já foi proposto no passado. Ora, a nomeação de um jovem investigador radicado em Inglaterra resulta apenas, para quem conhece a questão, de um «golpe publicitário» que não faz sentido. E convido o nomeado, seguramente um investigador de alta craveira na sua especialidade, a perguntar a si próprio se, no país onde trabalhava, jamais uma pessoa com as características profissionais dele seria nomeada ministro da Educação? Certamente que não! A responsabilidade não é portanto do ministro mas de quem o nomeou…

Duas outras pastas de enorme relevância social e financeira foram de novo sacrificadas às corporações, ignorando os poderosos conflitos que se digladiam nesses sectores, e depois queixamo-nos do populismo das Ordens profissionais! O caso da Justiça, onde os advogados alternam à vez com os magistrados, é o mais evidente e oneroso para o país. Independentemente das pessoas em causa, a prova está feita de que, se algo torna impossível uma gestão equitativa da Justiça, são esses conflitos corporativos aos quais continuamos a ser sacrificados. Dá-se o caso de o partido do governo ter entre os seus recentes parlamentares um professor de Direito que já pagou custos pessoais por tentar fazer cumprir a justiça: é Pedro Bacelar de Vasconcelos, cujo livro sobre a crise da justiça em Portugal (1998) terminava com as seguintes palavras: «Da porta da esquadra às grades do cárcere, da mesa do conselho de ministros ao hemiciclo de S. Bento, dos cidadãos cépticos às associações cívicas, tarda o sobressalto que agite este marasmo”. Porém, o partido escolheu outra pessoa.

Outro caso que só poderá ter as mesmas consequências que já teve antes é o regresso de um representante da classe médica ao Ministério da Saúde, o qual até já beneficiou com a vinda de pessoas de fora das profissões de saúde, como Paulo Macedo, o qual conseguiu economizar sem ferir a resiliência do SNS demonstrada por vários estudos recentes! Inversamente, onde o governo podia ter beneficiado da experiência de alguns profissionais, preferiu entregar os Negócios Estrangeiros a alguém estranho às funções, nomeadamente junto da UE, mas com presença regular no poder…

Como escrevi: não é uma questão de pessoas mas sim de ornamentar os ministérios com figuras das corporações favoritas do PS, enquanto o PCP se ocupará das dele e o BE das suas. Em suma, um governo de defesa dos interesses adquiridos e do conservadorismo social!