António Domingues apresentou finalmente a demissão. Pressuroso o PCP logo nos informou que “não vê necessidade de Centeno assumir responsabilidade”. E se o PCP, esse reduto moral da Pátria, “não vê necessidade”, logo a Pátria se sente desobrigada de fazer qualquer pergunta ao dr. Centeno. Sim, porque a Pátria há muito, muito mesmo, que delegou na esquerda, quanto mais radical melhor, a insigne tarefa de funcionar como uma espécie de conselho deontológico da nação. E assim se Jerónimo não vê mal, se Catarina Martins acha que não temos razão para nos apoquentar, se Louçã considera aceitável e se a ala esquerda do PS aprova, só por perfídia, ignorância ou má fé se pode duvidar da bondade do facto em questão. Caso esta espécie de reserva moral da Lusitânia não se indigne não há propriamente caso, não há grandoladas nem manifestações à porta. Na verdade, até parece mal falar do assunto, como aconteceu e acontece com a inenarrável figura de José Sócrates que, como ele muito bem sabe e não esquece, só deixou de ser primeiro-ministro porque teve o azar de em 2011 Mario Draghi não andar por aí a comprar dívida. Caso contrário aí estaria de pedra e cal, ele, Sócrates, a anunciar diariamente um cheque-bebé, outros choque tecnológico e mais um combate ao tremendismo, sob o olhar cúmplice dos socialistas.

Mas em 2016 o BCE compra e garante que vai continuar a comprar. Logo a normalidade deixou de ser em Portugal uma aspiração ou uma fugaz oportunidade para se tornar num negócio. Todas as semanas o Governo vai ao mercado e compra normalidade. A transação explica-se brevemente: perante qualquer facto que outrora teria colocado o país à beira do apocalipse, Jerónimo de Sousa diz que não está impressionado, Catarina Martins esclarece que não está chocada. Costa sorri e anuncia que recuperámos a normalidade. E logo os jornais maravilhados escrevem sobre a ausência de conflitualidade. Os observatórios entretanto já não observam, os activistas não activam e os indignados desinflamaram. Em troca desta expressiva criação de normalidade, os industriais do sector recebem o que pedem. Ou seja poder e alvíssaras.

Num dia é anunciada a contratação de mais trabalhadores para a função pública e logo aquelas pessoas que têm o cargo vitalício de falar pelos trabalhadores se congratulam, embora, dizem, seja necessário “aprofundar” a luta. Nem uma palavra, nem uma pergunta, nem uma dúvida sobre o perfil desses novos contratados por uma máquina estatal que não só pesa para lá do possível na despesa como distorce o mercado de trabalho ao pagar acima da média aos trabalhadores menos qualificados. (Para saber mais sobre este assunto recomendo a leitura de O Trabalho, Uma Visão de Mercado de Mário Centeno. Sim, exactamente o mesmo que agora é ministro das Finanças e que numa encarnação anterior foi técnico reputado).

Noutro dia é o ministério da Educação que anuncia que vai contratar mais professores (sabem que a população escolar está a diminuir?) e reinventa os rankings de modo a que num ápice bolivariano as escolas que estão em 300º lugar passam para o topo das melhores. Do aumento da violência nas escolas e das consequências da dita “flexibilização curricular” nem uma palavra. Mário Nogueira controla não só o que se faz na 5 de Outubro mas também o que se diz sobre o que lá se faz. Oficialmente ”avança-se”.

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Nas empresas públicas e no SNS os orçamentos esgotaram-se a repor direitos e privilégios, os serviços aos utentes são cortados mas, dizem-nos, está a “defender-se o serviço público”. Aprofundar, avançar e defender são alguns dos verbos por que ficamos a saber que aconteceu mais uma venda de normalidade, essa start up dos radicais: eles geram um produto – o desgaste constante das instituições – mas se lhes derem poder eles institucionalizam-se e garantem a paz, vulgo normalidade. Por outras palavras fabricam o veneno e o antídoto. Se não se compra o segundo eles espalham o primeiro.

O negócio está longe de ter sido descoberto em Portugal: o Podemos em Espanha faz a melhor das prospecções de mercado. Iglesias, o que vai para o parlamento como se tivesse acabado de sair da cama mas veste smoking para a Vanity Fair, montou uma estratégia de cerco ao PSOE cujos líderes se vêem perante o espantoso dilema de ceder ao Podemos ou terem de viver o “paseillo”, esse corredor transportado da tauromaquia para a política e em que o visado é regularmente cercado pela turba que o insulta, acusa, cospe… quando não recebe ameaças directas.

Por cá a técnica não é nova, foi experimentada com sucesso no desalojamento de Carmona da CML. Aliás, será que Marques Mendes, que tanto fala, tanto anuncia e tão citado é, já se pronunciou ou reflectiu sobre a sua actuação nesse caso? Ou mais propriamente sobre a forma como se deixou enredar pela retórica desse ensaio geral da geringonça que foram a deposição de Carmona seguida das eleições para a CML em 2007? E lembram-se como a normalidade logo chegou à cidade? Pois, agora chegou ao país. É bonito não é? E que paz! Mas quanto nos vai custar aquilo a que agora se chama normalidade, estabilidade ou tranquilidade?

Afinal um dia vamos ter de fazer as contas à normalidade. O que teremos pela frente quando este cenário cair ao chão? Não duvido que nos vai custar muito. Que vamos ter anos e anos de discussão sobre os cortes cegos, os ataques, o retrocesso, os filhos da senhora cor-de-rosa que vão emigrar… Mas a isso que já é grave mas não propriamente original, junta-se um dado, esse sim de custos difíceis de calcular: os protagonistas da nossa normalidade governam como se não encarassem a hipótese de um dia deixar o poder. Eles estão do lado de Vasco Gonçalves e José Sócrates, homens que não podiam deixar o poder pois era o poder que os fazia existir, e não de Soares, Cavaco Silva, Durão Barroso ou Guterres, líderes para quem as derrotas e as vitórias se complementavam.

À normalidade enquanto sinónimo de tranquilidade juntou Costa a normalidade enquanto padrão: o normal é governar ele. Qualquer outra possibilidade é uma anomalia. Um erro do sistema. Logo uma falha a corrigir. Não é por acaso que Passos se tornou quase um intruso: o facto de ter derrotado Costa torna-o numa excrescência, numa anormalidade sem espaço nem lugar dentro da normalidade celebrada.

A normalidade de Costa os seus custos políticos vão condicionar o o nosso futuro muito para lá dos ciclos eleitorais. Deixar cair Ricardo Salgado é coisa pouca com aquilo que nos espera: dizer aos vendedores de normalidade que o negócio deles acabou.Se não o fizermos a tempo será o negócio deles a acabar connosco.